quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

Concursos ULS

Pretensos concursos, alegadas irreguraridades e supostas ilegalidades...


Nada é certo, podem ser as más línguas do costume, de certo não há nada na vida, mas como diz o ditado: «onde há fumo - há fogo»...

Não sabemos se há um mínimo de verdade nas informações que nos deram três ilustres desconhecidos, no entanto a firmeza e convicção com que nos transmitiram a informação fez-nos dar umas boas gargalhadas.

Não é nossa intenção por em causa o bom nome de uma instituição que temos como idónea e sobre a qual não deve recaír, em nosso entender, qualquer sombra de duvida, no entanto publicamos que mais não seja para os nossos leitores darem umas gargalhadas.

Dizem as más línguas que para os recém-abertos concursos para a ULS da Guarda já se sabe, antes de se saber quem concorreu, quem vai entrar, por exemplo [não colocamos os nomes por extenso para salvaguardar as pessoas e apenas com o primeiro e último será mais dificil lá chegar dado que "há muitas marias na terra"]:

- Inês Campos, Júlio Pissarra, Marisa Santos, Nuno Monteiro, Anabela Guerra,  Odete Almeida, Adriana Rabaça, Carolina Moura, Anabela Lopes, Nancy Marcelino, Ricardo xxxx para os concursos [Nutrição / Estatística, Planeamento e Gestão / Apoio à Gestão / Análises Clínicas / Relações Publicas]

E por aí a fora...

Dizem as más línguas que é um corre-corre dentro do CA para ver se metem todos os afilhados antes de serem demitidos.

Referem tratar-se de uma verdadeira vergonha onde gente formada com habilitações e experiência profissional ficará de fora dos concursos porque estes estão a ser abertos para os "afilhados" de um tal AA ou os indicados por um tal assessor publico oriundo de F.C.R...

As más línguas que nos contaram afirmam conhecer a razão do porquê de cada nome dos que vão entrar, havendo questões como: quem é genro de quem, quem emprestou uma casa ao presidente do CA, quem fez isto ou aquilo...


Diz quem percebe que na abertura de um concurso ou de uma bolsa de emprego, apesar de alegadamente existirem algumas irregularidades não se pode provar nenhuma ilegalidade...

Sendo apenas um "presságio" estes rumores de más línguas...

Vamos aguardar pelo desfecho e só depois das pessoas admitidas é que se poderá averiguar se houve crime ou não nestes processos...

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Avanços (in)Esperados

A política na Guarda é de facto entediante...

Aquilo que adiantámos em outubro confirma-se...





Apesar do suspense que pretendiam criar em torno das candidaturas, do lado do PSD para atrasar o processo ao PS a quase um ano das eleições autárquicas está tudo clarificado, quer ao nível de timings quer ao nível de candidatos.

O Presidente Marcelo adiantou e a Rádio Altitude replicou a notícia.

Tal como anunciámos em outubro Amaro avança pelo PSD promovendo muitos recuos no PS, certos de que seriam muitos mais os candidatos caso ele fosse a Coimbra.

Do lado do PS Joaquim Carreira é o melhor posicionado segundo o inquérito do Jornal O Interior. Inquérito esse que é demonstrativo do peso de cada um dos candidatos socialistas do concelho e onde se destacam pela negativa os resultados da família Borges.



PS silenciado e em aparente acordo entre concelhia e distrital deverá apresentar uma candidatura de índole local, no entanto ainda é ponderada a vinda de um peso nacional, estando desde já descartado Santinho Pacheco.

O PSD e a JSD atacam em força o Jornal O Interior com um comunicado pouco abonatório dirigido ao director do jornal como que querendo silenciar o órgão de comunicação social até às eleições por forma a que a candidatura social democrata não seja beliscada.





Dado que a qualidade de imagem é pouca deixamos a transcrição do texto do comunicado acima:




«3 de Dezembro de 2016

É tempo de dizer basta!

Já chega!

É tempo de dizer assim não vale!

Não é possível continuar a ler os editoriais de um certo semanário a dizer mal da Guarda e da atuação do executivo da Câmara Municipal da Guarda, sem que a concelhia do Partido Social Democrata tome uma posição!

Vão dizer que tinha de ser e que a concelhia do PSD da Guarda tinha de vir a terreiro a defender a sua câmara! Engano... a concelhia está farta de assistir ao jogo desse jornal e do seu director, impávida e serena, sem nada fazer, à espera que este pare de ser tendencial, mas, não há meio..., tinha de ser!

Quando um jornalista no seu editorial, se atira, de unhas e dentes, semana atrás de semana, ao executivo da CMG, não está só a fazer mal à câmara ou ao seu presidente, está a fazer mal à Guarda e a todos os Guardenses, porque está tomar uma posição sectária, uma posição frontalmente contra tudo o que é feito em prol da Guarda, desvalorizando tudo o que tem sido feito, utilizando uma retórica de baixo nível, “parolo”, segundo ele, não sabemos se se aplica a quem ele quis dizer ou a quem o disse!

O director desse jornal, se quer tomar uma posição clara e assumida de oposição ao executivo só tem uma coisa a fazer: sair da capa de protecção de jornalista e vir para o tabuleiro do jogo político assumir-se como um candidato à câmara. Aí sim, poderá de forma livre e assumida, dizer o que acha sobre a gestão da Guarda e assumir as suas posições políticas, não estando condicionado a respeitar critérios de isenção jornalística que condicionam os profissionais que desempenham funções de tanta responsabilidade, como a de director de um jornal!

Assuma-se como candidato à câmara da Guarda e venha dizer às pessoas aquilo que pensa, através dos orgãos de comunicação social!

Só esperamos que não lhe aconteça aquilo que tem acontecido a esta comissão política concelhia, que apesar de tentar levar a sua opinião às pessoas, isso fica quartado por alguns jornalistas que decidem passar o lápis azul por cima, e pumba, não há artigo nesse jornal para ninguém...

Será que só se fazem coisas boas na Covilhã, ou em Viseu, ou em Pinhel?

Então e na Guarda nada?!

..ora bolas, chega, basta!

Assim não vale!

As Comissões Políticas de Secção do PSD e JSD »







quarta-feira, 12 de outubro de 2016

The Sky's The Limit?

Vai? Fica? Vai? Fica? Vai? Fica? Vai? Fica? Vai? Fica? 


Dizem umas más línguas que fica porque:

1.- As sondagens em Coimbra são péssimas para o PSD;

2.- Mesmo a ir tinham que lhe garantir o Parlamento Europeu a seguir e isso ninguém o pode fazer;

3.- O PSD não o deixa sair da Guarda;


Outras más línguas dizem que:

4.- Temem pelo choupal, pelo jardim da sereia e pelo jardim botânico;

5.- Os estudantes não o querem porque vai aumentar o caché dos artistas na semana académica;

6.- Há demasiado ambiente democrático em Coimbra para lá quererem um ditador.

Más línguas?

Infelizes da política?

Meia dúzia de criadores de ruído?



segunda-feira, 19 de setembro de 2016

Candidatos

Os partidos movimentam-se, os potênciais candidatos e candidatos a candidatos também?... ou não?...



Há candidatos, candidatos a candidatos, movimentos pró-candidatos, simpatias e antipatias, amizades e animozidades?... ou não?...

Há danças e movimentos de concelhias que tentam influênciar as distritais e de distritais que tentam movimentar os piões das concelhias?... ou não?...

Há quem tente as pontes e tente chegar às nacionais, e há nacionais que delegam nas distritais que por sua vez delegam nas concelhias?... ou não?...

Há medo de parte a parte de saber quem será quem?... ou não?...

Há confiança nas bases e nos apoios incondicionais?... ou não?...

Há interesses por entre as candidaturas?... ou não?...

Haverá candidatos que se preocupem verdadeiramente com as terras que ambicionam governar?... ou não?...

Mais uma providência cautelar aceite pelo Tribunal

Dado que a notícia é o Jornal o Interior, consideramo-la fidedigna e não um diz-que-disse, ou uma babuseira das muitas que são ditas por aí.


Podem consultar a notícia (Aqui)

No entanto e para pouparmos trabalho deixamos o copy / past do que está redigido pelo órgão de comunicação social:



"Um grupo de cidadãos da Guarda interpôs uma providência cautelar para travar o abate de árvores previsto na requalificação do parque municipal da cidade.

Em comunicado, os subscritores adiantam que o procedimento deu entrada no Tribunal Administrativo e Fiscal de Castelo Branco no passado 6 de setembro e que a providência foi «liminarmente aceite» no dia 16. O objetivo destes munícipes é manifestar a sua «profunda preocupação e discordância» pelo processo e pelo «estilo de atuação de poder autocrático [do executivo] e pela gravidade da situação dada a sua irreversibilidade», lê-se no documento.

«Sem qualquer sinal de intenção de alteração do projeto de abate e com contrato de adjudicação já assinado, esta era a única solução viável para parar o processo e estender o prazo para uma discussão que nunca foi efetuada, sob pena de ficarmos privados de um valioso património por uma opção estética questionável por parte de um grupo de arquitetos que, com certeza, não fruem nem conhecem a fundo o nosso parque municipal e a nossa cidade», acrescenta o grupo de cidadãos.

No documento recorda-se que «tem estado a ser levado a cabo desde há alguns meses, na Guarda, um massivo abate de árvores de notáveis proporções e antiguidade e surge agora um novo triste capítulo desta saga na requalificação do parque municipal». «Sabemos que umas poucas árvores devem ser abatidas por motivos de segurança e sanidade, mas em número ínfimo relativamente ao proposto – foram abatidas mais de 30 em março passado junto à vedação, e a abater entre 20 e 30 segundo um desenho do projeto a que tivemos acesso pontual», revelam os subscritores."

Coimbra...

Deixamos a letra da música que todos conhecem, dedicada a Coimbra, do Dr. Fernando Machado Soares

De facto só quem não conhece Coimbra, quem não viveu Coimbra é que não sabe a vontade de regressar!

    (imagem retirada de http://guia-viagens.aeiou.pt/)

Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.
Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.

Que as lágrimas do meu pranto
São a luz que lhe dá vida.

Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.
Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.

Quem me dera estar contente
Enganar minha dor
Mas a saudade não mente
Se é verdadeiro o amor.

Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.
Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.

Não me tentes enganar
Com a tua formosura
Que para além do luar
Há sempre uma noite escura.

Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.
Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.

Que as lágrimas do meu pranto
São a luz que lhe dá vida.

Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.
Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.

Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.
Coimbra tem mais encanto
Na hora da despedida.

Em breve neste blog

Como nutrimos especial curiosidade por autobiografias, estamos a paginar o livro de Ângelo Ramos do Nascimento, mais conhecido por Ângelo de Trancoso cujo título é:



«Ângelo de Trancoso sem papas na língua : relatos verídicos da sua vida»

As Árvovres Acima de Tudo

Ouve-se aqui e ali, verdades? Mentiras? Más línguas? Sabe-se lá!



Dizem que um dos membros da cpc do PSD se demitiu por causa das árvores (como dizem AQUI, por exemplo).

Depois de se ver livre do lugar no partido o ex-membro está mais activo na defesa do arvoredo?

Ora, se este membro se afastou para "não pôr o órgão em cheque", tal como foi noticiado, quer dizer que o PSD local está de acordo com o arboricidio que o concelho tem vindo a sofrer?

Será que todos aplaudem de igual forma aquilo que muitos consideram atrocidades ambientais?

Ou será que o ex-dirigente foi de alguma forma coagido internamente por exprimir a sua indignação pelo corte das árvores?

Será que as árvores são matéria política para que militantes daquele partido, eleitos entre os pares batam a porta?
Se é ve

quinta-feira, 8 de setembro de 2016

Movimentações "à antiga"

Rumores, verdades, disse que disse??? Não sabemos, nem estamos interessados, julguem os leitores!



João Pedro Borges pondera demitir-se de presidente da concelhia para dificultar a vida ao presidente da federação, uma vez que foi gorada a tentativa de novas eleições para presidente da federação e também por não o terem nomeado Diretor do IEFP. Em termos familiares, o irmão Miguel Borges é já diretor interino das águas do zêzere e coa na Guarda, a cunhada, formada em biologia marinha, é a Diretora da Escola Superior de Saúda da Guarda e recentemente, a esposa, Rita Miguel, foi contratada pela Fundação João Bento Raimundo.

Maria do Carmo Borges, apesar de já estar aposentada e da sua grande incapacidade física a condicionar bastante, ainda que informalmente já comunicou ao Lg do Rato a sua total disponibilidade para ser candidata à câmara da guarda, fazendo esse sacrifício pessoal em prol do partido, sobretudo num momento em que é muito provável que Álvaro Amaro seja o candidato à camara de Coimbra e possam aparecer muitos candidatos a candidato à camara da Guarda pelo PS


segunda-feira, 4 de julho de 2016

Post's no Facebook...



Nas redes sociais foi publicada a informação de que...





Julho está a ser um mês muito bom para os amigos do Município da Guarda.

Já foram entregues muito mais de 1 milhão de euros em contratos.

Um dos que chama mais a atenção é um pelo valor de 282.000 euros para uma firma de Aguiar da Beira, mais uma vez não se ajuda as empresas da Guarda.

Este contrato é para "Prestação de serviços de manutenção e conservação de espaços verdes..."

As árvores da Guarda estão a ser um negócio de muitos milhares de euros.




Deixamos os link's:




https://www.facebook.com/CasasIlegaisGuarda/?fref=ts




http://www.base.gov.pt/Base/pt/Pesquisa/Contrato?a=2265922

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Limpezas

Nos devaneios citadinos pós horário laboral com minis e imperiais à mistura ouvimos dizer que haverá uma empresa de limpezas da propriedade de um vereador que para além de ter ganho todos os concursos é a única que recebe a "tempo e horas"... - será verdade?



segunda-feira, 20 de junho de 2016

Manual do Assassino Político

Eis que [finalmente] publicamos o livro "proibido" Manual do Assassino Político


Deixamos o Livro:

Em PDF (Clicar AQUI)                                       No Issuu (Clicar AQUI)


 

Estamos a trabalhar numa versão anotada [com detalhes que escaparam ao autor como: quem é que andou a simular ter sido vitima de espancamento e andou de braço ao peito, quem foi obrigado(a) a despir-se em Tribunal, etc., etc.] - para esta nova versão [anotada e comentada] estamos também a reúnir fotografias [da época e actuais] dos personagens do livro.


Caso queiram lêr nesta página aqui fica o copy / past:

INTRODUÇÃO

(2001)

Portugal foi um dos primeiros países a abolir a pena de morte mas está bem longe de abolir a condenação à morte, política e social, que é publicamente feita na Imprensa, com base em «fontes policiais», antes mesmo de os tribunais se pronunciarem.
Imagine o leitor que, por denúncia, conspiração, inveja ou — mesmo — acto eventualmente ilegal, é posto sob suspeita e objecto de investigação policial. Ninguém, como se costuma dizer, está acima de qualquer suspeita. Mas, depois, com base num bom trabalho ou não, a investigação conclui que, sim, o leitor é culpado e é proposta ao Ministério Público a sua acusação. E ela surge. Em teoria, cabe aos tribunais confirmarem a acusação, condenarem, anularem a acusação ou declararem a inocência. E, até haver esse juízo derradeiro, como mandam o bom senso e as regras democráticas, o leitor é inocente.
Mas, na prática, o que se passa é radicalmente diferente: antes dos juízes, as «fontes policiais» e muitos jornalistas tornam-se o executor da pior das mortes. E de chofre, sem aviso. Atingido por golpes que nunca antecipou, se conseguir libertar-se das teias dessa morte social e política, o leitor nunca mais se libertará da acusação, consiga ou não ultrapassar o choque inicial e reagir. É uma verdadeira condenação à morte que destrói pessoas e que devasta famílias. Um dia, um tribunal considerá-lo-á inocente, ou anulará a acusação, mas o mal está irremediavelmente feito.
Isto aconteceu, em 1994, a um cidadão da República, na capital portuguesa: João Raimundo foi detido pela Polícia Judiciária em Lisboa à hora do almoço. Ia com a mulher almoçar. Só na manhã do dia seguinte, estando ainda preso, é que um tribunal ordenou a sua prisão preventiva. Podia não o ter feito. Mas o certo é que o destino do homem e da sua família ficou para sempre traçado: antes mesmo daquela primeira decisão do tribunal, a detenção já estava justificada — «terrorismo». E justificada em todos os órgãos de comunicação social.
A detenção desse homem, professor e presidente do Instituto Politécnico da Guarda, foi o ponto mais alto de um estranho processo judicial e político. Que ficou marcado pela intenção deliberada de, pelo menos, o afastar do cargo e de atingir a sua mulher Marília (ex-governadora civil, ex-secretária de Estado e deputada à Assembleia da República). Com base numa convergência tão grande de acasos e de intervenções que é difícil não pensar numa conspiração.
Em Janeiro de 1999, o Supremo Tribunal de Justiça anulou toda a acusação mas não o período sombrio em que João Raimundo, condenado à morte política e social pela Imprensa e pelas suas «fontes policiais», esteve preso durante um ano nas piores circunstâncias. Os meios que tinha ao seu alcance para se defender e o apoio de sua mulher e dos amigos ajudaram-no a sobreviver. Mas é legítimo pensar que, sendo outras as pessoas e as circunstâncias, nem João Raimundo nem a família sobreviveriam a esta verdadeira história de terror, como um dia a classificou o criminologista, e antigo agente da Polícia Judiciária, Francisco Moita Flores. E nunca saberemos se outras pessoas e outras famílias não terão, anonimamente, soçobrado em situações idênticas.
Este livro, Manual do Assassínio Político, é a história desse caso, que ficou conhecido pela designação apressada de «caso da “lista negra” da Guarda».
Conhecendo as pessoas e, em parte, algumas das circunstâncias, comecei a trabalhar neste livro em 1997, utilizando como matéria-prima documentos oficiais (que integram o processo) e textos publicados na Imprensa escrita.
À medida que fui conhecendo documentos e recordando textos já lidos, descobri os bastidores de um mundo político e social onde uma crise política — em 1994 e 1995 — e a aparência de mudança de regime criaram um quadro que convidava à conjugação organizada de esforços para destruir pessoas incómodas.
Não há, neste livro, intenção nenhuma de produzir um trabalho académico nem de fazer uma reportagem nem de afirmar uma investigação com tese dentro. Foi intenção do autor contar, apenas, uma história real, de modo tão factual quanto é possível, colocando as personagens certas nos lugares certos, descobrindo como se sobrevive às situações mais adversas e como, também entre nós mas sem um John Grisham que o relate, há advogados que triunfam e cuja tese é acolhida pelas mais elevadas instâncias de decisão.
Ao escrever este relato, descobri vilões e heróis (e estes foram--no João Raimundo, Marília Raimundo e o advogado Nuno Godinho de Matos) e os bastidores de algo tão inquietante que parece, por vezes, inacreditável.
Convidando o leitor a acompanhar-me nesta viagem perturbadora, devo fazer uma nota prévia.
Uma leitura apressada ou qualquer consciência de culpa podem fazer «tresler» e gerar a impressão de que há nestas páginas uma crítica generalizada a duas respeitáveis instituições: a Imprensa e a Justiça. Mas nada, no entanto, seria mais falso.
As opiniões, produzidas a quente e mal documentadas, a ausência de confirmação do que dizem as «fontes» sem nome, a urgência de vender a todo o custo, a sede de sangue e a luta sem tréguas nem escrúpulos por mais audiências não caracterizam, em absoluto, a Imprensa e os jornalistas. A Justiça, por sua vez, lançou-se mal nesta aventura mas as instâncias máximas de decisão (o Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal Constitucional) corrigiram o que de mal tinha sido feito, cumpriram o papel que a República lhes comete e foram ao encontro daquilo que o cidadão comum delas espera. Apenas há a lamentar que, nessa altura, a Imprensa não tivesse suspendido a sua avidez por más notícias para dar, por uma vez, boas notícias...

PARTE I

INIMIGOS A ABATER

CAPÍTULO 1

JOÃO E MARÍLIA RAIMUNDO
João Raimundo nasceu no Entroncamento em 24 de Junho de 1943. O pai era ferroviário, sem actividade política mas muito crítico do regime desde o dia em que ouviu Salazar dizer que um pão e uma sardinha eram suficientes para alimentar um operário dos caminhos-de--ferro.
É só em 1948 que, devido à mudança do local de trabalho do pai, João se fixa na Guarda. Aí, como qualquer criança de um dos centros urbanos mais distantes de Lisboa, faz o liceu, começa a trabalhar, e casa, em 1968, com Marília Dulce Coelho Pires Morgado, filha de uma das melhores famílias da Guarda.
O percurso de ambos não é totalmente convergente mas, a certa altura, a política e o PSD vão uni-los. Marília, maria-rapaz quando criança e primogénita de duas irmãs, fizera o curso de Filologia Germânica na Faculdade de Letras de Lisboa, preparando-se para ser professora. João Raimundo diversifica mais as suas actividades: vende carros de uma marca japonesa com êxito considerável, cria a sua própria empresa (Morgado & Raimundo) e vai ser, também, professor do ensino secundário antes de ser convidado a presidir à comissão instaladora do Instituto Politécnico da Guarda em 1985, para a qual é nomeado por despacho do ministro da Educação em 19 de Julho de 1985.
Ambos entram na vida política activa, partilhando dos mesmos ideais: uma ideia de social-democracia que Francisco Sá Carneiro, alguns «liberais» do Estado Novo e opositores ao regime caído em 1974 apresentam como objectivo do então Partido Popular Democrático (PPD). Que, denominado depois Partido Social Democrata (PSD) ficou «condenado» a governar sozinho o País durante dez anos, primeiro com maioria simples, em 1985, e depois com maioria absoluta, de 1987 a 1995.
A vida política e os triunfos do PPD/PSD sorriram a João e Marília embora o dinamismo de que dessem provas lhes tivesse valido alguma incomodidade por parte não apenas dos seus adversários políticos mas também por parte de correlegionários. E de sectores que, mais do que pelas ideias, se aproximaram do PSD porque este era o partido de governo e não por simpatia doutrinária.
João Raimundo, militante do PSD, tornou-se sindicalista no movimento sindical de professores que daria origem à Federação Nacional dos Sindicatos da Educação (FNE), da também social-democrata Manuela Teixeira, foi fundador, sócio n.º 1 e presidente do Sindicato dos Professores da Zona Centro, presidente da assembleia geral da FNE e dos Trabalhadores Sociais-Democratas (TSD), estrutura laboral do PSD, e membro eleito do Secretariado Nacional da União Geral de Trabalhadores (UGT), a central sindical onde convergiram PS e PPD.
A estas funções, essencialmente no âmbito da sua actividade sindical, João Raimundo acrescenta aquela que será a fonte de um poder que, embora localizado, vai assustar muita gente: a presidência da comissão instaladora do Instituto Politécnico da Guarda (IPG), cargo de que toma posse em 8 de Agosto de 1985. É o começo de um mandato de nove anos, que será abruptamente interrompido em 15 de Novembro de 1994.
É no IPG que João Raimundo ganha maior notoriedade, à medida que o instituto vai crescendo, a ponto de ser considerado a maior indústria do distrito devido à sua capacidade de gerar proventos que beneficiam toda a população.
Marília sobe no PSD os vários degraus do triunfo político. Em 1979, é eleita deputada à Assembleia da República nas listas da coligação, então denominada como Aliança Democrática, que reuniu o PPD/PSD e o CDS, de Freitas do Amaral e Amaro da Costa.
Governadora civil, na Guarda, secretária de Estado dos Ensinos Básico e Secundário e um dos pilares do PSD beirão, Marília é inevitavelmente associada à visibilidade política que João adquire e nunca faltarão as vozes que chegam a atribuir à secretária de Estado Marília Raimundo, quando ela ainda nem sequer o era, a nomeação do presidente de comissão instaladora João Raimundo mesmo contra a factualidade das datas.
Quando João Raimundo é nomeado para o IPG, em 19 de Julho de 1985, tinha então o governo como primeiro--ministro o futuro Presidente da República, Mário Soares, e, como base, o entendimento — que seria sempre conhecido por «bloco central» — entre o Partido Socialista (PS) e o PPD/PSD. Com uma lógica clara em matéria de preenchimento de lugares públicos: os dois partidos iriam dividi-los no Governo, no aparelho de Estado e em toda a administração.
João Raimundo tem, para essa nomeação, dois padrinhos, ambos por sinal do PS e naturais da Guarda: Almeida Costa, um secretário de Estado do PS no Ministério da Educação (onde João de Deus Pinheiro substituíra o então PPD José Augusto Seabra em Fevereiro do mesmo ano), e Abílio Curto. Este, o dirigente do PS que foi mantendo sempre a presidência da Câmara da Guarda até enfrentar um processo judicial em 1996, chega a reivindicar, publicamente, em declarações ao Diário de Notícias em Novembro de 1993, a autoria da proposta de nomeação de João Raimundo na lógica da divisão de cargos públicos entre os dois partidos.
Marília Raimundo só chega ao Ministério da Educação em 8 de Novembro de 1985, pela mão de João de Deus Pinheiro, nessa altura a bisar a pasta da Educação, já depois das eleições que deram a primeira vitória de uma série de três ao então presidente do PSD, Cavaco Silva. E quatro meses depois, note-se bem, da nomeação do marido como presidente do IPG.
O «bloco central» desfizera-se, entretanto, e o Governo era outro, integralmente formada pelo PSD.
É assim que, estando João já na presidência do IPG, Marília assume as funções de secretária de Estado dos Ensinos Básico e Secundário, cargo onde permanece até ao Verão de 1987, quando novas eleições legislativas dão a segunda vitória eleitoral e a primeira maioria absoluta a Cavaco Silva. A irresistível ascensão deste algarvio e do PSD vão marcar a vida do casal (que chega a hospedá-lo em casa, nos primeiros tempos de campanha do novo presidente do PSD) nas horas felizes e nas horas infelizes.
O PSD cresceu nesses anos... e o IPG também.
Na Guarda, distrito de 5 510 quilómetros quadrados com 14 concelhos, 336 freguesias e, segundo o censo de 1991, 188 mil habitantes (90 mil homens, 98 mil mulheres), o PSD é, tranquilamente, a força política dominante, tendo subido de 33,6 por cento dos votos expressos nas eleições de 1985 para 60,0 por cento em 1987... com um deslize posterior para 58,6 por cento em 1991. O PS, nesses tempos, não consegue mais do que manter a presidência da Câmara Municipal e a situação só melhorará em 1995, quando o PS sobe para 39 por cento, fasquia para a qual também acaba por cair o PSD, ficando cada um com dois deputados quando, antes, o PSD tinha três e o PS só um.
Quanto ao IPG, numa cidade que já não vive dos rendimentos dos emigrantes, de onde a indústria se afasta e onde os têxteis não se afirmam, transforma-se, paulatinamente, na maior fonte de rendimentos do comércio e dos serviços locais.
O artesão desse êxito é João Raimundo, que sabe que o seu instituto politécnico só pode crescer quando estiver dotado de um corpo docente próprio e minimamente estabilizado, com cursos credíveis e com estudantes que se identifiquem com a própria instituição e que sejam, como ainda gosta de dizer, os principais propagandistas da sua escola.
Recusando a ideia de uma universidade em vez de um instituto politécnico e sendo conhecedor das grande potencialidades deste sector do ensino superior, o presidente da comissão instaladora repete, com frequência, que quer que o IPG seja «o melhor instituto politécnico» e não «a pior das universidades». Aliás, essa orientação está bem visível na colectânea de 25 discursos que João Raimundo publica no Outono de 1998 com o título Reforçar o Ensino Politécnico, Desenvolver a Guarda, contendo as intervenções mais significativas feitas entre 1985 e 1994.
Para o efeito, João Raimundo desenvolve uma estratégia marcada por um espírito de iniciativa assinalável. E, dedicando-se quase por inteiro ao IPG, afasta-o do alcance de tentações mais fáceis: uma inauguração, uma visita partidária, uma sessão mediática com visitantes governamentais idos de Lisboa... Sem que, no entanto, deixe de explorar bem as ligações que mantém com o PSD e com o Governo que, sendo o ministro da Educação João de Deus Pinheiro, Roberto Carneiro, Couto dos Santos ou Manuela Ferreira Leite, precisa de mostrar — mais para consumo externo do que interno — a obra feita, que entusiasma, por razões diferentes, a cidade, os próprios alunos e alguns dos responsáveis dos outros institutos politécnicos, que parecem menos empreendedores.
Assim, sem fazer do instituto uma bandeira política (apesar de poder fazê-lo), e numa estratégia que se revelaria de risco, João Raimundo consegue manter a independência do IPG, afastando-se da tentação de fazer dele um exemplo de obra governamental e evitando cerimónias equívocas. É louvável e merece-lhe respeito entre a oposição mais isenta, mas causa crispações entre os próprios laranjas. E, com isso, acaba por criar anticorpos de peso. Dentro do instituto e fora dele.
É o caso do complexo processo judicial em que é envolvido por um ex-padre e professor do ensino secundário, Bernardo Duarte. Este, queixando-se de ter sido preterido num concurso público para preencher as vagas dos quadros docentes do IPG, move-lhe, em 1986, uma guerra pública que só terminará em Março de 2000.
É o caso da pouca atenção que João Raimundo dedica aos interesses partidários do PSD. Como, aliás, mais tarde o comprovará ao Diário de Notícias (6/05/95) o seu funcionário — ex-adjunto de Marília no Governo Civil, presidente do Centro Regional de Segurança Social e membro activo do grupo que viria a dar origem à famosa «lista negra» — Jacinto Dias: «O IPG é, sem dúvida, a maior obra do Governo no distrito [e] era o maior ponto de ataque ao Governo que existia no distrito. Tivemos, durante os últimos três anos em que o Dr. Raimundo foi presidente, muita dificuldade em gerir politicamente a situação.»
Os adversários de João Raimundo não eram, apenas, internos. A sua actividade sindical vale-lhe, também, um ódio de estimação por parte dos sindicalistas ligados ao PCP que, tendo rompido em 1979 com o Sindicato dos Professores da Zona Centro (SPZC), formaram nesse ano um sindicato paralelo com o nome de Sindicato dos Professores da Região Centro (SPRC) e se integraram na Federação Nacional dos Professores (Fenprof), contra a FNE de Manuela Teixeira.
Localmente, a sua preponderância no IPG desagrada, naturalmente, a Abílio Curto e aos socialistas da Guarda, com quem João Raimundo vai mantendo uma situação de conflito com raízes tão locais como partidárias.
O seu sucesso, no IPG, converge com o sucesso, externo, de Marília. Não dependem, politicamente, um do outro mas os seus críticos dirão sempre que o marido se destaca graças à mulher e que a mulher se destaca graças ao marido. E, no entanto, é fácil ver como João se afastava do exercício do poder pelo partido dominante e Marília exercia esse poder, de acordo com o mandato que lhe estava confiado.
Nascida em 1945, na Guarda, filha de uma das mais importantes famílias locais, Marília é um caso assinalável de êxito partidário e político. Dinâmica, enérgica e politicamente muito hábil, é o n.º 1 do PSD na Guarda, podendo, sem dúvida, considerar como seus os êxitos eleitorais do partido. Afável, tal como João, é conhecida de toda a gente e intransigente com os seus adversários. A sua preponderância vale-lhe, naturalmente, a adesão de todos... mesmo daqueles que, sendo momentaneamente seus compagnons de route, lhe voltarão as costas mais tarde. É o caso de Jacinto Dias, João Gonçalves e Soares Gomes, os founding fathers da «lista negra».
O PSD vivia, ainda nessa época, num estado de felicidade política relativa. Mas a situação política começa a degradar-se e alguns sectores do partido do Governo começam a sentir que se aproxima um verdadeiro desastre, sensação agravada pelo avolumar de rumores (rapidamente confirmados) de que o então primeiro-ministro Cavaco Silva queria afastar-se do partido e do Governo.
Os sinais estavam, à vista e não deixaram de ser capitalizados pela oposição, como o faria, nas eleições de 1995, o futuro secretário de Estado adjunto do primeiro-ministro António Guterres, António José Seguro, candidato pela Guarda premiado com o cargo de deputado europeu em 1998: «O Banco de Portugal foi para Viseu, a agricultura depende de Castelo Branco, a Telecom foi para Aveiro, a saúde depende de Coimbra, a Juventude depende de Viseu» (Semanário, 16/09/95).
As coisas estavam, portanto, mal para o PSD. A nível nacional e a nível local. E era necessário encontrar responsáveis.
Em 1993, Marília é chamada a uma reunião com o futuro sucessor de Cavaco na direcção do PSD, Fernando Nogueira, então a segunda figura do partido.
Ex-ministro da Justiça, com a pasta da Defesa Nacional no governo em queda de Cavaco, Fernando Nogueira diz-lhe que Álvaro Amaro, então secretário de Estado da Agricultura e seu ex-chefe de gabinete, será o próximo presidente da Comissão Política Distrital da Guarda. Mesmo sendo natural de Riba Mondego, concelho de Gouveia, e tendo feito toda a sua vida política em Coimbra, Álvaro Amaro é visto em alguns meios locais como uma pessoa estranha ao distrito. Marília não aceita a sugestão de Nogueira e responde que se o partido é democrático, então que se vote. «Você perde, não faz bem as contas», diz-lhe, enigmaticamente, o ministro. «Logo se vê», responde-lhe a deputada. E, em 1994, nas eleições internas do PSD da Guarda, Álvaro Amaro arrebata a Marília a presidência, com quatro votos de diferença. Mas isso não a afasta da Assembleia da República, onde mantém as funções de deputada, nem tão pouco é suficiente para afastar João Raimundo.
Ao contrário, João Raimundo parece poder ir ainda mais longe, como inevitável candidato (e óbvio vencedor) das futuras eleições no IPG. Estas deviam realizar-se assim que estivessem aprovados os estatutos da instituição, fazendo com que, depois do Instituto Politécnico de Lisboa, ainda em 1992, o Instituto da Guarda fosse o segundo a deixar a fase da instalação para entrar na fase da autonomia.
Vive-se, então, uma fase histórica para o ensino superior politécnico, no seu conjunto, que, existindo no papel desde 1979, só tivera maior visibilidade a partir de 1983 com as nomeações, muitas delas polémicas atendendo à divisão partidária dos lugares, dos seus dirigentes e dos seus primeiros professores, de acordo com a lógica do «bloco central».
O ensino politécnico tinha nascido, primeiro com o ministro da Educação Veiga Simão, com o objectivo de formar técnicos (e professores, nas Escolas Superiores de Educação) com o grau académico de bacharel, obtível em três anos, numa ruptura — nada gradual — com o ensino universitário. É a corporização da ideia de recriar um sistema de formação de quadros intermédios, mais descentralizado do que as universidades (que manteriam até 1997 o exclusivo dos cursos de licenciatura de cinco anos) e mais próximo das realidades locais. O ministro da Educação do primeiro governo de António Guterres, Eduardo Marçal Grilo, tem nessa altura o cargo de director-geral do Ensino Superior e é o arauto do politécnico, que consolidará depois em 1997.
Este ensino superior de novo tipo (que, algo desastradamente, chegara a ter o nome de ensino superior de curta duração) nasce nas principais cidades de todo o País, a partir de 1982: em Beja, Bragança, Castelo Branco, Coimbra, Faro, Guarda, Leiria, Portalegre, Porto, Santarém, Setúbal, Viana do Castelo e Viseu, com escolas de formação de professores, de tecnologia e gestão e agrárias. Desde o início — como é de norma — que estas instituições são dirigidas por comissões instaladoras nomeadas.
A partidarização das nomeações, algumas delas desajustadas das necessidades reais do ensino politécnico, acaba por não contribuir para a solidez do sistema, apesar da benevolência interessada com que as comunidades do interior o aceitam. Estas vêem-no como uma espécie de bem menor sem, no entanto, dispensarem o objectivo de terem uma universidade, de uma forma ou outra.
Mas, apesar disso, o ensino politécnico consegue crescer e vencer as várias debilidades. Os números de 1995 dão dele um retrato sugestivo: 40 mil alunos, 50 escolas superiores e 25 milhões de contos na fatia do Orçamento de Estado que cabe, nesse ano, ao Ministério da Educação.
Sendo, embora, mal conhecidos fora das suas próprias cidades, os institutos politécnicos tinham, nessa altura, adquirido, tal como as universidades nas cidades onde elas se implantaram ao longo deste século, uma dupla importância: tal como os reitores, eleitos desde 1979, os presidentes dos institutos politécnicos são os representantes de estruturas que, além do privilégio social e político, dão a cada cidade um lucro líquido anual de milhões de contos.
É fácil perceber a sua importância, que tem também um cariz político: onde o poder central, mesmo sem critério, nega a possibilidade de uma universidade, o instituto politécnico, com a envergadura que tem, é uma obra que, para inaugurações e outras iniciativas, não pode ser desperdiçado pelo partido no Poder, sob pena de deitar por terra a hipótese de mostrar obra feita e de angariar mais votos em troca de um pólo de ensino superior.
Em 1994, quando só ainda o Instituto Politécnico de Lisboa tinha deixado o regime de instalação e elegera o seu presidente, a Guarda é um bom exemplo: três mil alunos, um corpo docente estabilizado e estatutos em vias de aprovação. E um impacto de seis milhões de contos de receitas anuais para a própria cidade, no consumo de materiais de construção, no consumo de bens (roupas, alimentação, bebidas e alojamento) por parte de milhares de jovens, na sua maioria oriundos das classes média e média alta, e nas expectativas de fixação dos seus diplomados, quer no ensino quer nas áreas técnicas e de comércios e serviços.
Com prestígio e muito sólido financeiramente, o IPG foi e é, ainda, um dos muitos exemplos de como o ensino superior transforma uma cidade onde o tecido empresarial é, ou se torna, frágil, a ele podendo ser acrescentados outros casos emblemáticos de Norte a Sul: Vila Real (com uma universidade), Covilhã (universidade), Castelo Branco (instituto politécnico), Viseu (instituto politécnico), Évora (universidade) e Beja (instituto politécnico e pólo universitário do sector privado).
O IPG vivia, como instituição de ensino superior público, dos dinheiros do Orçamento de Estado. O dinheiro ia de Lisboa, do Ministério da Educação, e praticamente sem contrapartidas. De propinas (nessa altura, como desde os anos 40, a 1200$00) já se falava, datando de Maio de 1992 o primeiro decreto-lei de Cavaco Silva que estabelece uma propina média de 55 contos que deveria aumentar progressivamente.
Se o Governo era a fonte de todo o poder, se o Governo era do PSD, mal parecia que o PSD local não recolhesse os louros desse investimento, que o próprio João Raimundo considerava tão importante como o dinheiro gasto, nessa altura, no IP5. Mas o PSD da Guarda era mantido à distância. Ia às sessões mais solenes mas censurava à «sua» governadora civil, Marília Raimundo, o facto de aceitar uma situação que não beneficiava os laranjas. Que, dados os laços matrimoniais entre o presidente do IPG e a governadora civil, até poderiam alimentar suspeitas de que o objectivo era mesmo prejudicá-los... Nesta perspectiva, era fácil argumentar que João Raimundo era um entrave e havia que removê-lo.
A primeira tentativa viveu da hipótese de substituição de todos os presidentes, quando, em Outubro de 1993, o então ministro da Educação, Couto dos Santos, fez aprovar um decreto-lei que delimitava o fim do regime de instalação dos institutos politécnicos.
Seria possível (e útil) afastar os presidentes em exercício para que fossem outros os responsáveis que iam dirigir os processos de elaboração dos estatutos e de lançamento das eleições? Poderia haver legislação para, já em 1994, «limpar» todos os presidentes dos institutos politécnicos? As perguntas foram feitas, nos círculos mais íntimos do Governo, e as respostas foram ponderadas. Mas o bom senso, a evolução do quadro político e o parentesco partidário da maioria dos presidentes das comissões instaladoras aconselhavam prudência.
Em Dezembro de 1993, na sequência de uma manifestação de estudantes violentamente reprimida pela polícia, Couto dos Santos (cuja origem era a política pura e dura e não a educação) é demitido por Cavaco. A sua herança — que inclui o secretário de Estado do Ensino Superior, Pedro Lynce de Faria, e os directores-gerais do maior ministério do Estado português — passa para a sua sucessora, Manuela Ferreira Leite, íntima de Cavaco e, antes, secretária de Estado do Orçamento. E finalmente, decide-se: é impossível substituir todos os presidentes, mais a mais em pleno processo de eleições.
Ou seja, mesmo contra a vontade do seu próprio partido, João Raimundo fica condenado a permanecer na presidência do IPG. E, extrovertido, nem esconde que fica para as eleições de modo a acabar a sua obra. Colocando-﷓se, assim, na mira directa dos seus rivais, que se assustaram perante a hipótese de a sua bête noire poder continuar em funções no IPG.
Por isso, no começo de 1994, começa a desenhar-se a solução. Política, local e cirúrgica: há que afastar João Raimundo do cargo e da corrida sem danos para o PSD e sem que a «opinião pública» e a população se surpreendam.
A concretização desta estratégia, finamente delineada, traduz-se, num primeiro tempo, nas pressões para que ele saia, a nível de Governo (onde o então secretário de Estado Álvaro Amaro, sucessor de Marília na presidência da Comissão Política Distrital do PSD, o sugere a Pedro Lynce de Faria), começando, mesmo, a circular o nome de eventuais substitutos.
No Ministério da Educação, Manuela Ferreira Leite mantém-se discreta, aparentemente desinteressada, e Pedro Lynce de Faria tenta mostrar que está reticente. Mas, já num segundo tempo, no inner circle do Ministério da Educação opta-se por uma derradeira cartada: um convite para que João Raimundo aceite o cargo de director-geral do Ensino Superior. O «sim» passaria pela sua saída da Guarda. A proposta esbarra numa resposta obviamente negativa de João Raimundo.
Uma outra hipótese surge no terreno do processo eleitoral, para o qual seria essencial encontrar um bom candidato. Assim, o PSD pondera hipóteses para as eleições e, com elas, circulam convites dirigidos a alguns notáveis convenientemente universitários.
De entre os nomes que começam a circular, há um de peso: Fernando Carvalho Rodrigues, o cientista que celebrizaria o «satélite português», o PoSat, membro da lista do PSD nas eleições para o Parlamento Europeu por convite dos social-democratas locais e candidato desejado à presidência do IPG. Era uma alternativa para a presidência, apesar de não pertencer aos seus quadros, graças à disposição dos estatutos que permitiam a eleição para o cargo de personalidades externas de reconhecido mérito e alargada experiência profissional.
Mas Carvalho Rodrigues, que nunca negou esses rumores, não terá querido avançar e, à medida que o tempo vai passando, João Raimundo perfila-se como vencedor inevitável das eleições.
Para os seus adversários, é a catástrofe iminente... e havia que encontrar os meios de esconjurá-la.
Até porque, para eles, a confirmação de João Raimundo na presidência do IPG, já legitimado pelo voto, poderia dar, mesmo que indirectamente, um alento a Marília e fazer piorar as dores de cabeça dos laranjas locais, como em todo o PSD mais voltados para dentro e para as benesses do Poder do que para as populações que os haviam eleito, e que já se amarguravam com a hipótese de uma provável derrota nas eleições legislativas de 1995. Sem a Câmara, desde sempre ganha pelo PS, o PSD arriscava-se a perder a posição de poder que, por interposto militante, tinha na mais importante entidade do distrito: o IPG. Essa situação transformaria a vitória de Álvaro Amaro na Comissão Política Distrital numa verdadeira vitória de Pirro: boa para uso interno, inútil para o exterior.
Quanto a Marília Raimundo, nessa altura já só uma discreta deputada mas ainda expressão da verdadeira militância social-democrata do PPD de Sá Carneiro, era vista como uma intolerável «força de bloqueio» interno. Não correria Álvaro Amaro o risco de, se perdidas fossem as eleições legislativas de 1995, perder também o lugar na hierarquia local (e, logo, nacional) do partido? Se assim fosse, não regressaria Marília ao lugar que quatro votos lhe haviam roubado? Numa altura em que o PSD via o poder a esboroar-se, tudo era possível.
Podemos supor que a angústia dos laranjas só cessou no momento em que se encontrou a única solução adequada: o equivalente a um golpe de Estado, com cobertura legal e justificação pública, para retirar a João Raimundo todas as possibilidades de intervir. De forma arrasadora: a sua desonra pública, uma acusação que o fechasse a sete chaves numa prisão por um período suficientemente longo para ser esquecido e, já agora, a destruição pública do casal (Marília podia tornar-se uma pessoa incómoda) e, porque não?, da família.
A chave para abrir esta porta de saída estava no processo movido contra João Raimundo por Bernardo Duarte e que tivera uma sentença desfavorável para o presidente do instituto, proferida pelo juiz Granja da Fonseca, considerado por muitos como próximo do PSD.
O famoso caso da «lista negra» da Guarda nasce nesta altura. Não com João Raimundo mas contra ele.

CAPÍTULO 2

O SACERDOTE E O JUIZ
Para respeitarmos a cronologia, temos que considerar que o «caso da “lista negra”» — ou, melhor, a oportunidade para lhe dar origem — começou dez anos antes da prisão de João Raimundo, quando este era, ainda, professor do ensino secundário na Escola Secundária da Sé, no coração da Guarda.
No ano lectivo de 1983/84, João Raimundo estava a fazer a profissionalização, num regime que antecedia a entrada nos quadros do Ministério da Educação e a contratação definitiva. Era, ao mesmo tempo, dirigente do Sindicato dos Professores da Zona Centro.
De acordo com a legislação vigente, João Raimundo tinha direito a uma redução de tempos lectivos, devido à sua qualidade de dirigente sindical. Solicitou-a e ela foi-lhe concedida, para esse ano escolar, por um despacho da então secretária de Estado dos Ensinos Básico e Secundário, Maria Helena Carvalho dos Santos.
A redução não foi bem aceite por outro professor, Bernardo Duarte, ex-sacerdote católico, nessa altura com 55 anos.
Bernardo Duarte não se poupou a críticas públicas, como se esse «privilégio» não fosse utilizado por dezenas de dirigentes dos sindicatos de professores. Pretendendo dar o exemplo, e receando que essa situação pudesse ser aproveitada para novo ataque, pessoal ou político, João Raimundo já nem pediu a redução no ano lectivo seguinte (1984/85), limitando-se a acumular a actividade docente com a actividade sindical. Mas isso não apaziguou Bernardo Duarte.
A questão foi invocada, mais tarde, para explicar a pretensa «animosidade» de João Raimundo contra Bernardo Duarte e objecto de análise no âmbito de um de vários processos judiciais. Por isso, convirá registar uma terceira opinião, independente, sobre o assunto, de acordo com o registo escrito do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, que cita a então presidente do conselho directivo da escola, Maria Manuela Cruz Mascarenhas Monteiro Faria, ouvida já em 1986 a propósito do despacho que permitiu a redução de horário e que iria dar origem à polémica:
«... Recorda que, na altura, o Sr. Dr. Bernardo Duarte, na qualidade de elemento da secção de avaliação, por também ser delegado à profissionalização, criticou essa redução e considerou-a “uma situação de favor em relação aos outros formandos”. Em consequência desta posição, recusou-se sempre o Sr. Dr. Bernardo Duarte a emitir qualquer parecer em relação ao Sr. Dr. João Raimundo no tocante à sua avaliação. A depoente desconhece se o Sr. Dr. Bernardo Duarte moveu diligências, a nível ministerial ou outras, no sentido de ser revogado despacho [da secretária de Estado]. Sabe também que no segundo ano o Sr. Dr. João Bento Raimundo não requereu a redução, baseado na qualidade de dirigente do sindicato, ficando assim em igualdade de circunstâncias com os restantes formandos.»
Ia a polémica em bom andamento quando, em Julho de 1985, João Raimundo é nomeado presidente da comissão instaladora do IPG por João de Deus Pinheiro, tomando posse em 8 de Agosto desse mesmo ano. E, no âmbito da sua actividade, abre concurso para a contratação de professores na recém-aberta Escola Superior de Educação (ESE) para as aulas de formação inicial e para as actividades de orientação pedagógica. O novo presidente deitara mãos à obra e tentava levar por diante o esforço de erguer a instituição de ensino superior que a Guarda de há muito reclamava.
Enquadrado pelo Decreto-Lei 381/D/85, de 28 de Novembro, o concurso para orientadores da ESE na área do Português foi aberto por edital do presidente do IPG publicado no Diário da República, II série, de 9 de Julho de 1986, estipulando os seguintes factores para consideração: posse de um de entre os cursos de três escalões de habilitação própria, classificação profissional de «Bom», prática docente após a profissionalização no grupo e disciplina a que concorre, prática docente de orientação pedagógica na formação de professores no grupo e disciplina em que é profissionalizado, aproveitamento na frequência do mestrado na disciplina a que concorre, curriculum vitae relevante, a melhor nota profissional e a habilitação académica em caso de empate e, finalmente, entrevista.
A esse concurso, que tinha um júri próprio formado por três professores do IPG, apresentaram-se 31 candidatos, todos eles docentes do ensino preparatório e secundário, tendo sido excluídos dois. Os resultados, baseados numa graduação dos candidatos admitidos, não satisfizeram todos e três houve que apresentaram recurso da decisão do júri.
Relativamente a um, que pedia a divulgação da grelha de seriação, decidiu o júri não ser «conveniente» torná-la pública. Quanto a outro, cuja formação era de História, manteve-se a exclusão por ser o concurso destinado a orientadores de Português. O terceiro era Bernardo Duarte.
A deliberação do júri foi clara sobre este candidato: tinha havido um lapso na sua inclusão num determinado grupo, por ter concorrido a todos os grupos em aberto. E esse lapso podia corrigir-se, embora isso, não lhe garantisse a entrada.
Havia, no entanto, um segundo ponto onde a posição do júri não podia ser corrigida: o candidato não podia ser incluído no então ensino preparatório (hoje, equivalente aos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico) por ser professor profissionalizado no ensino secundário. Aliás, nem Bernardo Duarte poderia concorrer a professor efectivo do ensino preparatório por não ter a profissionalização nesse grau de ensino. Esta decisão foi tomada em 5 de Setembro de 1986, em reunião do júri.
Bernardo Duarte não a aceitou e, no próprio dia 5, distribuiu um comunicado intitulado «No Instituto Politécnico da Guarda — Um estranho concurso público documental», acusando o júri e o seu presidente de ter favorecido (e convidado directamente) alguns professores.
No texto, de duas páginas em formato A5, o signatário proclamava, num estilo muito próprio: «Concurso público documental; Instituto Politécnico; Escola Superior de Educação; Educação; Educação Superior; Piso de uma competência científica... humana e humanizante; onde a competência e o rigor imperem... ou CORRUPTIO OPTIMI, é caso para todos ajuizarem, ainda que analfabetos. O que não é admissível é que tantos drs., em tão superiores lugares, dão cobertura a tanta CORRUPTIONI OPTIMI, para que o produto final — a EDUCAÇÃO e os futuros professores não saiam PESSIMI». [O texto é, rigorosamente, aquele que viu a luz do dia.] O panfleto aludia a dois textos diferentes: uma entrevista de João Raimundo ao jornal A Guarda, onde o presidente do IPG afirmara que «o nosso piso terá que ser muito especificamente o piso de uma competência científica, pedagógica, didáctica e, naturalmente, humana e humanizante» (edição de 1 de Agosto desse mesmo ano) e uma outra entrevista, de Manuel Prata, ao jornal Notícias da Guarda, no mesmo dia, em que o então presidente da ESE defendera «uma escola onde o saber, a competência e o rigor científico imperem».
Em 19 de Setembro, Bernardo Duarte produz novo comunicado, intitulado desta vez «No IPG — O rei vai nu», onde afirma: «O signatário tem o direito e o grave dever de gritar pela legalidade e de alertar quem de direito que não deixe a nu as Instituições e a Educação. A EDUCAÇÃO. Sob pena de um solene requiem, nesta cidade da Guarda, acolitado por quem, envolto em fumo, vai nu de todo».
Cinco dias depois sai novo comunicado. «No IPG — A deforma do sistema educativo já começou» é o título, com uma explicação fornecida pelo autor: «Deforma: neologismo de formação analógica a reforma mas de semântica antagónica». E a seguir: «Concentrou-se o Senhor Presidente [do IPG]. Sentiu convulsões no cérebro e, na sua dinâmica e profícua competência obrou — perdoe-se — a cagada, no manto diáfano da protecção, salpicando o júri do concurso e conspurcando a instituição superior de Educação que é o Instituto, a EDUCAÇÃO, a EDUCAÇÃO SUPERIOR, as Direcções Gerais, as Secretarias de Estado, o Ministério da Educação, o PSD, que lhe meteu nas mãos o Instituto, o Governo, a Democracia, as leis em vigor e a prática assente nessas mesmas ideias» (sic).
E é aí que, garantindo ser objecto de «ameaças telefónicas nocturnas, a coberto do anonimato», o autor do panfleto vai procurar razões ao ano lectivo de 1983/84 para garantir haver animosidade de João Raimundo contra ele, invocando a «muita protecção que acoberta J. R.» e que protege «a desonestidade, a injustiça e a ilegalidade». Finalmente, sem medir as palavras, dirigindo-se ao júri, garante que o lugar é seu e afirma: «Ganhou-o em concurso público documental. A vossa hipotética entrega será um roubo, em público, e as mãos que aceitarem o lugar serão mãos de receptador de roubo.»
Inconformado com os ataques, João Raimundo dirige, em 8 de Outubro de 1986, uma exposição ao delegado do Procurador da República na comarca da Guarda. Nela, declara «difamatórias e injuriosas» e ofensivas da honra e consideração algumas das expressões utilizadas por Bernardo Duarte no seus comunicados, e indicando-o como autor dos crimes de difamação e injúria, punidos nos termos do Código Penal, e requerendo a instauração de procedimento criminal contra o ex-sacerdote.
Enquanto o processo era analisado e marcada a audição do queixoso para 31 de Outubro, outras forças começam a mover-se.
A 11 de Outubro, a Assembleia Municipal da Guarda aprova moções do PS e do PRD onde já se generalizava tudo, num ataque directo à gestão do IPG: «injustiças flagrantes nas admissões de pessoal docente», «professores com longo currículo e habilitações académicas superiores são preteridos em concurso público por alguém que fora convidado pelo sr. Presidente [do IPG] a concorrer» e «mesmo em concursos públicos, o presidente do IPG desrespeita as mais elementares normas de qualquer concurso documental, admitindo os candidatos apenas segundo os seus gostos e preferências pessoais». A moção aprovada exige, mesmo a demissão do presidente do IPG.
A seguir, a 28 de Outubro, nove professores que se afirmavam «lesados» pelos resultados do concurso (com Bernardo Duarte em primeiro de uma lista, não alfabética, de nomes), protagonizaram uma conferência de imprensa contra João Raimundo para «dar conta, ao distrito da Guarda e ao País, da gravidade de uma actuação que — de tão escandalosa — é desprestigiante das instituições educativas e — a manter-se — será desprestigiante para o próprio regime». E as palavras são cada vez mais fortes: «abuso descricionário do poder», «corrupção», «apadrinhamento», situações «aviltantes e anti-democráticas», «danos morais e materiais».
A ofensiva não pára. Em 28 de Novembro, O Jornal do Fundão publica um artigo de Bernardo Duarte, onde este critica as respostas que João Raimundo dá às críticas dos professores, duas semanas antes, numa entrevista ao mesmo jornal. O texto refere-se de tal modo à posição de João Raimundo (expressa no título «Não houve compadrio no preenchimento de vagas no IPG»), com o violento comentário «Este é o título de um extenso artigo que o sr. Dr. João Bento Raimundo, presidente do IPG, ditou ex-cathedra para o Jornal do Fundão», que o próprio jornal se sente obrigado a esclarecer: «Não publicámos qualquer artigo do presidente da CI do IPG mas uma entrevista com o Dr. João Raimundo, na sequência, aliás, de uma conferência de imprensa promovida por um grupo de profes-sores lesados nos concursos do IPG (entre os quais o Dr. Bernardo Duarte).»
É também em Novembro que entra em cena uma personalidade determinante para este caso. O mensário Douro e Neve — Jornal de Turismo — Actualidades — Desportos de Inverno publica um extenso artigo assinado apenas pelas iniciais F.M., pseudónimo de Granja da Fonseca, juiz local, com o título «A máscara dos políticos já começou a cair...», onde, de novo, se invoca a moção da Assembleia Municipal para se criticar João Raimundo («A Guarda reconhece que este instituto, tal como os outros espalhados pelo País, são um grande bem para o desenvolvimento regional, tanto no aspecto cultural como até económico. Mas a Guarda não confunde que a Instituição seja um Homem.») e para retomar a polémica dos concursos. No texto, o autor cita o caso de Bernardo Duarte mas dedica sete parágrafos a José Alberto Saraiva, professor cunhado de Granja da Fonseca que acompanha Bernardo Duarte na conferência de imprensa de Outubro.
Aliás, esta não é a primeira vez que Granja da Fonseca intervém a favor do cunhado.
Já no ano lectivo de 1983/84 o fizera quando, objecto de um processo disciplinar, José Alberto Saraiva é procurado, na Escola do Magistério Primário da Guarda, por um inspector ido de Lisboa, do Ministério da Educação.
A visita descrevê-la-á, em juízo, Granja da Fonseca do seguinte modo: «... Esse sr. inspector apareceu cá, num dia em que o Dr. Saraiva estava em aulas, em Lisboa. A minha mulher era professora na Escola do Magistério e pediu-lhe, segundo me veio a referir, que permitisse ser o irmão avisado da sua presença na escola ou, então, que ouvisse o marido, uma vez que ele poderia fornecer-lhe alguns elementos. No dia seguinte, chegou o Dr. José Saraiva e, depois de ter conversado toda a manhã, segundo me referiu, com esse sr. inspector, dirigiu-se de tarde à escola para passar ao papel as suas declarações. Atendendo a que esteve toda a manhã a falar, e porque tinha necessidade urgente de regressar a Lisboa, resolveu, após o almoço, levar consigo um gravador. Chegado à escola, foi pedir ao inspector se o autorizava a ditar oralmente para ser mais rápido. Anunciou-me que mais me iria pedir se eu poderia estar com ele por causa dos vários diplomas que as duas Secretarias de Estado lhe referiam nos ofícios e ele não entendia. Com efeito, ele é licenciado em Arte e Design. Aguardei no corredor que o meu cunhado lhe pusesse a questão. O sr. inspector, por gentileza, veio ao corredor. O mesmo autorizou a minha presença.»
«O processo», finaliza o juiz, «foi arquivado pelas razões constantes do mesmo documento.»
À imprensa de expansão nacional também chegaram, embora de forma localizada, os protestos de Bernardo Duarte e de José Alberto Saraiva, o primeiro no semanário O Diabo («Professores alertam — Processo pouco transparente no concurso para docentes no Instituto Politécnico da Guarda», 16/12/86) e o segundo no semanário Tal & Qual («É um escândalo! — escreve um professor a Cavaco Silva», 31/12/86), aqui com fotografia e carta acusatória de José Saraiva.
Na carta ao então primeiro-ministro, o cunhado de Granja da Fonseca une um ponto de vista doutrinário de Bernardo Duarte com as acusações que, misturando datas de nomeação, o Sindicato dos Professores da Região Centro, já então fazia: «A situação é escandalosa. Os procedimentos diabólicos do Dr. João Raimundo só podem compreender-se pelo facto de ser marido da Secretária de Estado dos Ensinos Básico e Secundário, permitindo-lhe essa situação ultrapassar os limites do aceitável.»
O processo suscitado pela queixa de João Raimundo tem início em 31 de Outubro de 1986, com a audição do queixoso, e termina, com a última audição, em 23 de Janeiro de 1987. O juiz é Granja da Fonseca e o inquérito preliminar dá origem a uma decisão de arquivamento do processo, por parte do Tribunal Judicial da Comarca da Guarda e a ordem de João Raimundo ter que pagar 15 contos de imposto de justiça.
A decisão de Granja da Fonseca, publicada em 21 de Abril de 1987, ocupa 32 páginas manuscritas, dando o signatário toda a razão a Bernardo Duarte e perfilhando o ponto de vista deste professor de que os textos são «panfletos, como reconheceram os licenciados em Português e interrogados sobre esta matéria».
Quanto à queixa de difamação e injúria, escreve Granja da Fonseca: «Uma ou outra expressão, porventura mais mordaz, fez transparecer o objectivo do agente [Bernardo Duarte] que, não sendo de ofender, antes pretendeu brincar, gracejar, caçoar a ridícula situação em que o júri caíu...».
João Raimundo recorreu da decisão para o Tribunal da Relação de Coimbra que, 2 de Dezembro desse ano, chumba a sentença de Granja da Fonseca, determinando a aceitação da acusação e a marcação de julgamento e explicando porquê: «os autos contêm indícios suficientes de que o arguido, com o seu comportamento, preencheu os requisitos do tipo legal de crime de difamação, a que se referem os artigos 164.º, 167.º e 168.º do Código Penal, pelo que se impunha que o Meritíssimo Juiz recebesse, nessa medida, a acusação particular e designasse dia para julgamento.»
Bernardo Duarte recupera, então, o resultado das críticas públicas que fizera a João Raimundo em 1984, explicando por aí a sua exclusão do concurso, numa queixa dirigida ao delegado do Procurador da República junto do Tribunal Judicial da Guarda, que terminava do seguinte modo:
«... [João Raimundo] acumulou crimes com premeditação, com vontade determinada de causar prejuizo ao ora participante, tanto a nível profissional, como social, como moral, como económico e de retirar para si e para outros benefício ilegítimo, em conluio com cada um dos elementos do júri até à consecução efectiva do intentado.»
E é assim que, três anos depois do concurso (cujas considerações até tinham sido abandonadas na acusação do Ministério Público da Guarda), João Raimundo e os professores Manuel Prata, Joaquim Quadrado Gil e Abel Joaquim Pereira são acusados dos crimes de abuso de poderes e de falsificação de documentos na forma continuada, em 10 de Novembro de 1989.
Significativamente, o Ministério Público retoma a tese que vingara na primeira instância (o tribunal presidido pelo juiz Granja da Fonseca) e que Bernardo Duarte também havia brandido como leit motiv:
«[João Raimundo] nutria contra este concorrente [Bernardo Duarte] forte antipatia por circunstâncias ocorridas nos anos da sua própria profissionalização, entre 1983 e 1985 [ano em que João Raimundo já não pedira a redução]. Sendo o queixoso Duarte delegado à profissionalização de disciplina de Português, nessa qualidade deduziu perante os órgãos escolares oposição no sentido de ao ora arguido, então estagiário, ser cancelado, como foi, um privilégio que lhe havia sido concedido de redução de cerca de seis ou sete tempos semanais. Movido por esse sentimento, concebeu a ideia de afastar a todo o custo o denunciante [Bernardo Duarte] do concurso ou eliminá-lo de modo a ser preterido...»
A acusação que o Ministério Público faz sua é pródiga, note-se, em termos tão pouco precisos como «porventura», «cerca de seis ou sete tempos semanais», «em data não precisamente determinada, ao que parece no mês de Agosto, o primeiro arguido resolve simular a existência de um documento contendo a nomeação dos membros do júri e os critérios que deveriam ter em conta na selecção dos candidatos», «assim, em dias não precisos, ao que parece do mês de Setembro»...
Que a causa, de Bernardo Duarte e do Ministério Público, não era muito sólida, mostra-o a forma como, em 28 de Novembro desse mesmo ano, tendo passado três anos sobre o concurso, Bernardo Duarte desfere novo ataque, constituindo-se assistente e declarando-se «prejudicado».
Seguia, assim, à risca as observações que o Ministério Público já fizera e acrescentava novo «prejuízo»: «Ainda o ofendido ficou prejudicado sob o ponto de vista físico, já que a conduta dos arguidos lhe alterou, irreversivelmente, o sistema nervoso, o que o obrigou a tratamentos em centros clínicos». E retendo que há ainda outras despesas a considerar, Bernardo Duarte pede, pelos «danos morais», uma indemnização de cinco mil contos, exigindo que os quatro arguidos (João Raimundo e os membros do júri) fossem condenados a «reconhecerem o direito do ora assistente a ser ressarcido por todos os danos causados pelas suas condutas delituosas».
O Tribunal Judicial da Comarca da Guarda, pela voz do juiz Orlando Gonçalves, não se mostra, no entanto, favorável a Bernardo Duarte. Num extenso despacho, de 25 páginas, datado de 15 de Maio de 1991, o Tribunal passa tudo em revista: o concurso, as polémicas, a tese da vingança, as acusações e, mesmo, as apreciações algo vagas do Ministério Público.
E conclui:
«Em face de todo o exposto, consideramos não só não haver indícios suficientes de que os ditos documentos são forjados, como ainda que os arguidos tenham abusado dos seus poderes, pois a prova são depoimentos e declarações cheias de dúvidas, suposições, alternativas nas próprias suposições face à falta de factos objectivos. Aliás, a acusação, com o devido respeito, reflecte estas dúvidas, sendo empregues os termos “parece”, “indeterminado”, “porventura”.
«Se o próprio assistente não tem, relativamente aos factos que poderiam preencher tipos legais de crime, certezas mas dúvidas, não podemos concluir que, sendo os arguidos levados a julgamento é mais provável a condenação do que a absolvição dos mesmos.
«Quanto a nós, pensamos que se verifica precisamente o contrário, isto é, com as provas apresentadas é muito mais provável a absolvição dos arguidos dos crimes de abuso de poderes e falsificação de documentos, do que a sua condenação.
«Assim, não encontramos elementos para receber a, aliás, douta acusação do Ministério Público.
«Relativamente à acusação particular do assistente Dr. Bernardo Duarte, a mesma traduz-se no acompanhamento da acusação do Ministério Público e no aditamento de novos factos que reforçam aquela e servem de suporte a nova incriminação.
«Tendo a acusação do Ministério Público caído, tambem necessariamente cai a do assistente, que pressupõe o recebimento daquela.(...)
«Sobre esses factos recordo, com a devida vénia, o já doutamente referido no acórdão da Relação de Coimbra, citado a propósito de iguais referências pelo então arguido Dr. Bernardo Duarte: “Há regras, há pressupostos, há critérios técnicos que o Tribunal Comum não está em condições de aplicar ou de apreciar. O certo é que, até ao momento, nenhuma das instâncias com competência específica para o efeito deu razão ao ora assistente”.» E é assim que o Tribunal recusa a acusação do Ministério Público e a de Bernardo Duarte, ao mesmo tempo que sentencia que este «fica sem causa de pedir, por não haver factos integradores de responsabilidade civil dos requeridos, o pedido de indemnização civil».
Mas esta apreciação não convenceu o Ministério Público que, em 5 de Junho, recorre para a Relação de Coimbra, da qual, desta vez, recebe um sim. E, em 18 de Fevereiro de 1992, o Tribunal Judicial da Comarca da Guarda aceita as acusações do Ministério Público e de Bernardo Duarte (que apresenta como sua testemunha José Alberto Saraiva).
O julgamento, presidido pelo juiz Granja da Fonseca, demora dois anos, sendo a sentença proferida em 22 de Fevereiro de 1994. Granja da Fonseca dificilmente poderia ser aceite sem reservas por toda a gente, depois do modo como se identificara com Bernardo Duarte. Esse factor e um episódio revelador dão origem a um incidente muito especial.
Em 14 de Outubro de 1992, um dos arguidos, Abel Pereira, não pôde comparecer na sessão do julgamento por estar doente, tendo avisado o tribunal através do seu defensor. Achando necessário confirmar a doença, o que era legítimo (e que se costuma fazer no domicílio, atendendo até às circunstâncias potencialmente embaraçosas da doença desse professor), Granja da Fonseca decidiu ordenar a detenção de Abel Pereira e a sua condução ao tribunal para, aí sim, ser observado por médicos entretanto convocados. O doente chegou ao tribunal, sob detenção, pelas 11 horas, só pôde ser examinado pelos médicos (na biblioteca) cerca das 13 horas e, finalmente, por volta das 14 e 30 pôde recolher a casa.
É assim que João Raimundo e alguns cidadãos que com ele se identificavam pedem ao Conselho Superior de Magistratura, de acordo com a Lei, para não ser Granja da Fonseca a presidir ao julgamento.
O pedido foi recusado e é este juiz que dita a sentença, em 22 de Fevereiro de 1994, num despacho de 32 páginas onde se garante que os arguidos tinham actuado com «dolo directo». A condenação resulta em penas de prisão (suspensas), a multas (ou prisão, em alternativa) e numa indemnização de 750 mil escudos a Bernardo Duarte. E o juiz até parece ironizar: «Atendendo à personalidade dos arguidos, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior aos factos puníveis e às circunstâncias destes, conclui-se que a simples censura dos factos e a ameaça das penas bastarão para afastar os delinquentes da criminalidade e satisfazer as necessidades de reprovação e de prevenção do crime».
João Raimundo e os restantes arguidos recorrem da sentença para o Supremo Tribunal de Justiça, que se pronunciará em Fevereiro de 1997. Mas, nos três anos que medearam entre as duas decisões, muita coisa iria acontecer, incluindo a prisão de João Raimundo... por terrorismo.

CAPÍTULO 3

A CONSPIRAÇÃO SAI À RUA
João Raimundo foi preso em Lisboa numa terça-feira, dia 15 de Novembro de 1994, 19 dias depois de Luís Brígida, o seu motorista ter sido preso.
As circunstâncias que rodearam a prisão continuam, ainda hoje, rodeadas por dúvidas nunca esclarecidas.
Tenhamos presente que, quando Brígida foi preso, João Raimundo, na qualidade de presidente do Instituto Politécnico da Guarda, encontrava-se a caminho de Macau. Não em fuga, como o testemunham todos os restantes presidentes dos institutos politécnicos, mas para participar numa cimeira do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos (CCISP).
E para Macau viaja, aliás, acompanhado: no mesmo avião, segue também João Duarte Silva, presidente da comissão instaladora do Instituto Politécnico de Setúbal. Por razões diferentes (no caso de João Raimundo, uma deslocação ao congresso dos TSD na Figueira da Foz, onde é cumprimentado por Cavaco Silva), chegarão os dois 24 horas mais tarde do que o previsto. A ausência de ambos é notória numa fotografia tirada a todos os participantes presentes logo no início da reunião. E esse facto permitirá alimentar todas as dúvidas: João Raimundo não está, afinal, em Macau... Uma rádio da Guarda, que vai ter um papel determinante em todo o processo, asseverará, mais tarde, que o presidente do IPG estava em Hong Kong a depositar dinheiro, que nem se saberia ser seria seu...
É aí, em Macau, que João Raimundo ficará a saber, em contacto telefónico com Marília, que o motorista estava preso. Ao telefone, ambos especulam sobre o que pode ter motivado a situação mas concluem pela hipótese de um «assunto de saias». Sem nada a temer ou a esconder, João Raimundo não se sente ameaçado. Nem em Macau nem em Londres, onde faz escala, pensa, por um instante que seja, em não regressar.
Mas fá-lo. Com um acaso pelo meio, que não deixará de ser registado por quem o vigiava: o carro em que regressava a casa, vindo do aeroporto, pára, já noite, para ele poder jantar. A PJ, que o seguia, perde-lhe o rasto. Ver-se-á o resultado, mais à frente.
No dia seguinte, regressado a casa, mesmo sentindo-se objecto de suspeitas pela prisão do seu motorista, João Raimundo continua a não se ausentar. Está tranquilo e tranquilo continuará. Não desaparece da Guarda. Não se rodeia de advogados. Limita-se apenas, perante os rumores que começavam a circular, a suspender as suas funções, delegando-as noutro membro da comissão instaladora que o acompanhava desde o início, Martins da Fonseca. E fica à espera de que tudo se esclareça.
Apesar de auto-suspenso, no Ministério da Educação, em Lisboa, tratam-no como se estivesse ainda no exercício pleno das suas funções. E é do gabinete do secretário de Estado do Ensino Superior, Pedro Lynce de Faria, que sai uma convocatória para uma reunião no Ministério. Na sexta-feira, dia 11 de Novembro. João Raimundo pede ao secretário de Estado que a reunião não se faça nesse dia e ela é marcada para a segunda-feira seguinte, dia 14.
Nessa noite, sexta-feira, o delegado do Ministério Público da Guarda deixa-se fotografar com jornalistas, numa confraternização festiva... e, no domingo, dia 13, João e Marília seguem para Lisboa.
Segunda-feira de manhã, na reunião com Pedro Lynce de Faria, João Raimundo trata de alguns assuntos pendentes e troca impressões com o secretário de Estado sobre os rumores que rodeavam a prisão do motorista. Este sugere-lhe não haver motivo para preocupações. Depois, o secretário de Estado e o seu chefe de gabinete, Rui Trigoso, mais tarde colocado na Casa Militar da Presidência da República com Jorge Sampaio, acompanham-no, muito afavelmente, ao elevador, no 11.º andar. De consciência tranquilizada, João Raimundo passeia na Avenida 5 de Outubro, a ver montras.
Não faltarão, depois, algumas críticas dirigidas à equipa do Ministério da Educação por João Raimundo ter sido recebido, dada a sua situação de auto-suspenso. Nem sobre a coincidência entre a reunião de Lisboa e a detenção na mesma cidade. Caberia a deslocação a Martins da Fonseca? Talvez mas o certo é que o convite para a reunião foi pessoal e partiu da Secretaria de Estado.
É nesse dia, segunda-feira, que é oficialmente emitido o mandado de detenção. Terá tido origem em Coimbra mas assina-o Maria Amália Correia Rolão Preto, delegada do Procurador da República na comarca da Covilhã, com data de 14 de Novembro de 1994: «Manda a qualquer funcionário de justiça ou autoridade competente que detenha e conduza a este tribunal no prazo de 48 horas o denunciado: João Bento Raimundo (...) a fim de ser submetido a 1º interrogatório judicial, nos termos do disposto no art.º 245 al. a) do Código do Processo Penal e caso tal não seja possível deverá ser presente ao Juízo da comarca competente da área da detenção». O mandado não especifica porquês. É uma dúvida legítima, posta mais tarde pelos advogados de João Raimundo, mas que não é suficiente para impedir a detenção.
Registe-se, de passagem, a afirmação de um semanário especializado em «casos de polícia», entretanto desaparecido, O Título, na sua edição de dia 17 desse mês (três dias depois): «a prisão fora autorizada por um mandado de captura emitido a semana passada pelo juiz da comarca da Covilhã que preside à instrução do processo». A ser isto verdade, a decisão seria anterior a 12 de Novembro, sábado... E podia ter sido executada a qualquer momento e em qualquer sítio, incluindo a Guarda... embora fossem maiores as repercussões se a prisão tivesse lugar em Lisboa. Onde João Raimundo estivera prestes a deslocar-se na sexta-feira, dia 11, a convite do Ministério da Educação. Como outras, esta dúvida nunca será esclarecida.
Há, ainda, outra ocorrência a registar no dia 14, segunda-feira.
Numa informação de serviço da Subinspecção da Guarda da Polícia Judiciária, o agente Carlos Barata escreve ao subinspector Manuel Portugal: «Para os fins tidos por convenientes tenho a honra de informar V. Exa que hoje, pelas 23H20, pessoa que declinou a sua identidade telefonou para o Piquete desta Inspecção e disse o seguinte: “Prenderam o motorista mas não vão prender o Raimundo. Ele já foi para Lisboa e brevemente vai ausentar-se para o Brasil. Começou a ter cuidados quando regressou de Macau ao ponto de na viagem que fez de Lisboa para a Guarda ter telefonado a alguém do IPG para mandar uma viatura daquele instituto ao seu encontro e ter mudado de viatura durante o percurso.” Não foi possível colher outros elementos porque a pessoa que telefonou desligou de seguida.»
Perante este papel, há novas dúvidas que se põem. Quem seria o denunciante? Seria a sua voz masculina ou feminina? Não seria natural que o autor da nota fizesse referência ao sexo da voz? Ou, se ele fosse indistinto, à impossibilidade de identificá-lo? A informação não parece ter suscitado qualquer admiração mas, tão só, ter servido para apressar a ordem de prisão. Ou para a justificar?
A única coisa que sabemos é que o destinatário dessa nota, Manuel Portugal, vai ser um dos homens que, na Judiciária da Guarda, se ocuparão, praticamente em exclusivo, de todo o processo — com uma brevíssima excepção, numa pista que nunca foi convenientemente explorada — e de transferir para o papel as declarações dos homens que surgiriam na «lista negra».
E ficamos a saber também que, fazendo parte do processo, essa informação de serviço justifica todas as atitudes de qualquer funcionário de justiça ou autoridade competente. Mesmo a decisão de o deter em Lisboa — a meio caminho entre a sua casa e o Ministério da Educação — para que não recaísse a suspeita de que o convite para a reunião seria uma forma de o prender, literalmente falando, em Lisboa. E dando tempo suficiente, ao deterem-no só no dia seguinte ao final da manhã, a que a notícia da sua detenção preceda em algumas horas a sua chegada à Guarda numa viagem em que o detido está, na prática, incomunicável.
Todas as especulações são possíveis.
É assim, sem suspeitarem do que poderá acontecer, que, na terça-feira, dia 15, João e Marília se dirigem, ao fim da manhã, a um restaurante nas imediações da casa que mantinham em Lisboa, ao Rego.
Aí, João é abordado por dois homens, que se identificam como agentes da Polícia Judiciária e que lhe perguntam se estava armado. Que não, responde João Raimundo, abismado. Não conhecia de armas, contactara com elas durante o serviço militar e nem era caçador. Não lhe dão voz de prisão mas pedem-lhe que os acompanhe a instalações da PJ que não eram as da Rua Gomes Freire e que, ainda hoje, João Raimundo não consegue situar.
E João Raimundo — que «não ofereceu resistência aos agentes» porque «“parecia que já estava à espera disto”, segundo uma fonte policial» (ainda de acordo com O Título) — lá vai, estupefacto. Não suspeitava de que podia ser alguma coisa contra si e isso é revelado pelo facto de, só no dia seguinte, a família ter procurado um advogado para acompanhar a situação.
Aliás, nesse dia, ainda não se percebe que a detenção era só o começo de um calvário.
À tarde, depois de comer umas sanduíches e de ter bebido água, João Raimundo é informado de que tem que ir para a Covilhã. Mas, quando se metem à estrada, informam-no de que o destino é outro: a Guarda, afinal. Onde, bem como em todo o País, já se vai sabendo, pela agência Lusa, da detenção em Lisboa, rapidamente justificada por uma alegada «lista negra».
No caminho, no IP3 (na zona da Aguieira), páram num restaurante para jantarem, por proposta dos agentes que o acompanham. A voz de prisão só lhe é finalmente dada nas instalações da PJ da Guarda por volta das 22 e 30, ou seja passadas já doze horas. Aí, fotografam-no e tiram-lhe as impressões digitais. Esvaziam-lhe os bolsos e só lhe deixam a roupa que tinha vestida. É só aí que João Raimundo acaba por tomar conhecimento dos motivos que — segundo a Imprensa — o fizeram ficar durante todo o dia sob custódia da PJ. A noite passa-a fechado numa cela do Estabelecimento Prisional da Guarda.
A essa situação, só por si inquietante, junta-se outra de alcance público: na tarde do mesmo dia em que é preso, é dado imediatamente como certo que a ministra da Educação, Manuela Ferreira Leite, o exonera do cargo. É uma decisão rápida, tão rápida que se antecipa à acusação formal e que até parece, pela velocidade com que é divulgada, já estar preparada.
Três dias depois da detenção, a 18, escreve O Independente: «Raimundo foi condenado [no «caso Bernardo Duarte»] por actos praticados no âmbito das suas funções no Politécnico. O Ministério não o beliscou. Porém, após a prisão do seu motorista, aceitou (oficialmente...) o pedido de suspensão. Que, afinal, não passou do papel. E, agora, que chegou a vez de Raimundo, correu a tomar posição. A exoneração foi anunciada na terça-feira. Na quarta, a ministra negou-a. E, nesse mesmo dia, o seu gabinete confirmou-a. Muito hábil.» Nunca Manuela Ferreira Leite se pronunciou publicamente sobre este caso.
No dia seguinte, quarta-feira, o já demitido presidente do IPG comparece, às 11 horas, perante a juíza Helena Melo, na Covilhã, rodeado de grande aparato policial... e de jornalistas, devidamente informados do que estava a acontecer. A juíza adia a audiência para as 15 horas e os agentes convidam-no a ir a um restaurante muito conceituado do Fundão, sem que disso seja informado o seu advogado, e aceitam que o detido lhes pague o almoço.
A juíza faz-lhe três perguntas. A primeira é em quem votou, enquanto militante do PSD, nas eleições para a Comissão Política Distrital — João Raimundo diz que votou em quem lhe apeteceu. Se há algum «saco azul» no Instituto? — João Raimundo diz que não, que é proibido. Depois, hão-de falar-lhe, ainda, de Luís Brígida: se é capaz de bater, ou de mandar bater, noutra pessoa — que não, que o motorista não é agressivo e que o único problema é «gostar de saias», responde, ainda.
O interrogatório dura 40 minutos. No fim, a juiza Helena Melo confirma a prisão preventiva.
João Raimundo espera no exterior até ser informado de que iria ficar detido na Covilhã. O agente Casaleiro entra em cena para dizer a João Raimundo que tem que ir para Coimbra porque podia ser atacado na prisão da Covilhã. Ficará em Coimbra até Janeiro, volta de novo à Covilhã por 14 dias e, a 25 de Janeiro, já muito doente, consegue ser transferido para o Hospital-Prisão de Caxias, em Lisboa, onde aguardará o julgamento.
Oficialmente, a prisão é explicada pela necessidade de prosseguir as averiguações por alegado envolvimento de João Raimundo em actos de terrorismo, sugerindo-se mesmo que ele poderia fugir. O que, note-se, não fizera quando lhe surgira oportunidade para o fazer em Lourdes ou Macau.
Se a justificação oficial para a prisão preventiva é lacónica (terrorismo), o certo é que as explicações para a decisão do Tribunal da Covilhã já circulam há mais de 24 horas pelo País. Não através do poder judicial ou de qualquer autoridade policial mas graças a uma notícia da Lusa, convenientemente saída na tarde do próprio dia 15 e tecnicamente catalogável como «fuga de informação». Ou seja, a condenação — com os resultados que se vão conhecendo pelos dias seguintes — está, como é habitual, na praça pública mesmo antes de o próprio a conhecer.
Vejam-se os títulos do dia 16: «João Raimundo preso» (Diário de Notícias), «Ex-presidente do Politécnico da Guarda detido pela PJ — João Raimundo “traído” pelo motorista» (Diário As Beiras, Coimbra), «João Raimundo fomentava terrorismo?» (Correio do Minho, Braga), «Dirigente social-democrata preso sob a acusação de envolvimento em actos de terrorismo — A “vendetta” da Guarda» (Público).
A informação posta a correr pela Lusa a partir da Guarda citava significativamente «fonte policial» e afirmava, desde o início, o que se tornaria a primeiríssima explicação para o caso... antecipando, mesmo, a acusação formal, que só saíria em Abril de 1995.
A prisão de João Raimundo «segue-se à detenção, há três semanas, do motorista (...), Luís Brígida, acusado de aliciar pessoas para actos de violência sobre algumas personalidades da Guarda, nomeadamente um juiz», segundo noticiava o Diário de Notícias, a partir da primeira informação da Lusa. E pormenorizava:
«O detido é suspeito de estar implicado na elaboração de uma lista de presumíveis alvos de um plano de vingança, visando “assustar e até matar” várias pessoas.
«À cabeça da lista encontrava-se o juiz Granja da Fonseca, que julgou um processo movido contra João Raimundo e outros professores do Instituto Politécnico da Guarda (IPG), condenando o réu a dois anos e meio de prisão, sentença que levou a defesa a recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça.
«Na origem do processo, cujos arguidos foram pronunciados pelos crimes de abuso de poder e falsificação de documentos, esteve uma queixa apresentada por Bernardo Duarte, que se candidatara em 1986 a docente da Escola Superior de Educação, integrada no IPG.
«A “lista negra” incluía ainda o advogado de acusação particular naquele processo, Álvaro Guerreiro, e três dirigentes locais do PSD: o director do Centro de Emprego, Soares Gomes, o director do Centro Regional de Segurança Social, Jacinto Dias, e o presidente do Instituto de Juventude, João Gonçalves. A questão foi despoletada por Ângelo do Nascimento — um operacional da rede bombista no pós-25 de Abril —, que teve conhecimento do alegado plano quando foi alegadamente contactado pelo motorista de João Raimundo para espancar Jacinto Dias, presidente da concelhia social-democrata da Guarda e vice-presidente da distrital.
«Ângelo do Nascimento, também conhecido por “Ângelo de Trancoso”, terá revelado a Álvaro Guerreiro o “trabalho” pedido, para cuja execução terá recebido a quantia de dois mil contos. Acusado de terrorismo por alegado envolvimento no plano de João Raimundo, o seu motorista, Luís Brígida, foi detido a 27 de Outubro.»
Apesar dos tempos cautelosos dos verbos e da proliferação de várias formas da palavra «alegado», a suspeita — para não falar em certeza... — estava definitivamente lançada na opinião pública. Em alguns casos, sem preocupações com os mais elementares princípios: «Mas desde a queixa de Bernardo Duarte, o caso do Politécnico nunca mais parou. O processo chega ao tribunal, é julgado, João Raimundo é condenado e aposta numa vingança, descoberta depois do envolvimento de uma figura sinistra.» A prosa é do Diário As Beiras (16/11/94), a partir da qual se supõe que nem toda a gente conhece o princípio de que ninguém pode ser considerado culpado sem ser condenado.
Na cobertura noticiosa do que aconteceu, o Público tenta ir ainda mais longe no próprio dia e envia uma jornalista, Alexandra Campos, à Guarda para fazer um enquadramento mais completo da matéria.
É aí, num texto, intitulado «A “vendetta” da Guarda», que a «lista negra» adquire mais nomes (como se estivesse ainda a ser construída...), além dos nomes fornecidos pela «fonte policial» à Lusa: há mais dois jornalistas que, no entanto, não são identificados.
A tese é a mesma que já viera a público: o desagrado de João Raimundo para com a sentença do «caso Bernardo Duarte». Mas com reticências de quem consegue parar para pensar... embora por pouco tempo: «... Não parece um motivo suficientemente grave para desencadear um processo de vingança desta dimensão». E, mais à frente, «... Se a sentença aplicada por Granja da Fonseca a João Raimundo não seria, por si só, razão suficiente para a alegada vingança, já os acontecimentos políticos que perturbaram a Guarda em Fevereiro passado poderão ajudar a compreender melhor os motivos». E a tese alarga-se às eleições em que Álvaro Amaro vencera Marília Raimundo: somando esta situação e a sentença, escrevia a repórter, numa explicação que se adaptava que nem uma luva à conspiração sem, no entanto, tirar todas as consequências do que escrevia: «De uma assentada, a família Raimundo caía em prestígio e em importância política».
As notícias, no entanto, não salientam o que também deveria parecer óbvio: o crime de terrorismo era, além do crime de tráfico de droga, o único que permitia a prisão preventiva, de acordo com o Código Penal em vigor, dado o facto de para elas serem previstas penas de prisão superiores a 8 anos.
Na quinta-feira, 17, João Raimundo é transferido para Coimbra, para uma cela sem luz vulgarmente utilizada para castigar os presos mais rebeldes. E é também nesse dia que outro jornal de expansão nacional vai, de novo, recuperar a ideia da «lista negra» como vingança pela sentença de Granja da Fonseca (que era de prisão com pena suspensa...) e pela derrota de Marília: «A derrota em duas frentes foi um rude golpe, pela perda de peso político que significou» (Diário de Notícias, 17/11/94)
Entretanto, um advogado interpõe recurso, invocando a lei que permite que um preso preventivo seja transferido para mais perto da família. E João Raimundo consegue voltar para a Covilhã. Fica aí 28 dias, isolado de um mundo que se lhe torna, de repente, hostil.
A divulgação das razões da PJ para que a prisão se mantenha é acompanhada não apenas pelas declarações e reacções públicas de políticos e partidos como, também, pela proliferação de comentários, generalizadamente desfavoráveis e concordantes com a tese da «lista negra».
Álvaro Amaro é, compreensivelmente, um dos primeiros notáveis a pronunciar-se. «É uma coisa pessoal e não do partido (...) Os partidos não são feitos de santos». E, sobre a rápida exoneração de João Raimundo: «É um acto que determina, de maneira clara, que o PSD entende que ninguém está acima da lei (...) e age em cima da hora e do acontecimento pelo bem público».
E dizia mais, o então secretário de Estado da Agricultura: «O PSD da Guarda é defensor intransigente de que em Portugal ninguém está acima da lei. As autoridades fazem todas as investigações independentemente dos poderes políticos. Ninguém pode julgar ninguém enquanto corre o processo de investigação. O PSD da Guarda trabalha com toda a serenidade, com vista aos objectivos que temos pela frente, que é conquistar a maioria absoluta em 95. O caso nada tem a ver com o PSD da Guarda. Porque é que se amanhã um de nós estiver a ser investigado por uma qualquer asneira que faça, há-de ser por ser do PSD ou de outro partido ou corporação qualquer? Percebo que associem este caso ao PSD mas não tem nada a ver com o partido.»
Esta linha de defesa não era, decididamente, a melhor e soava mal. Não faltou quem ripostasse ao novo n.º 1 do PSD local, sobretudo no que tocava ao «ninguém está acima da lei»: «A afirmação, no momento em que foi feita, com o facto consumado (João Raimundo já estava detido) perde efeito. Soa a “elogio fúnebre”. E cabe perguntar o porquê de tão tardia tomada de posição quando eram públicas e notórias (particularmente na Guarda), desde há bastante tempo, as “tropelias” de Raimundo, “tropelias” essas, aliás, já condenadas em dois tribunais; (...) talvez fosse preferível que, em lugares oficiais, “não houvesse ninguém acima da moral”...» (João Fragoso Mendes, Diário de Notícias, 17/11/94).
Também na Guarda, se pronuncia o então presidente da Câmara, o socialista Abílio Curto.
Adversário e antigo colega de escola de João Raimundo, Abílio Curto comenta: «Não estou a vê-lo a conduzir um plano desta dimensão. Faltam peças ao puzzle, a história continua muito mal contada». E, relativamente ao PSD, comenta: «Álvaro Amaro não pode dissociar este caso, grave e sério, de uma determinada conjuntura político-partidária do PSD. Foi preciso apear e abater a Dra. Marília Raimundo da presidência da Comissão Política Distrital do PSD para que estas coisas acontecessem.» Figura grada do PS local, Abílio Curto podia ter aproveitado a queda dos seus adversários políticos para se regozijar. Mas as suas declarações apenas denotam uma imensa estranheza e muitas suspeitas sobre o que estava, de facto, a acontecer.
Quanto ao PCP, mantêm-se actuais as observações feitas, antes da prisão, pela sua organização na Guarda: o eventual ataque a Granja da Fonseca era, afinal, «um ataque directo à integridade, à independência e coragem dos juízes portugueses que não cedem às pressões do poder instituído».
Depois, no rescaldo das primeiras impressões, a 17, o jornal Terras da Beira ouve três dos notáveis implicados no caso, apresentados como adiante se cita.
O primeiro é Soares Gomes (identificado já como «alegada vítima»): «Não tenho comentários a fazer. Só espero que se faça justiça, justiça, justiça».
O segundo é Bernardo Duarte («professor, queixoso no processo que levou à condenação de JR»): «Ao tomar conhecimento do facto pela rádio, só posso dizer que as pessoas, quando tocadas pelo desfavor, inspiram sentimentos de humanidade. Porém, os actos dos homens, se desviados do caminho recto, têm de ser sujeitos a correcção para que se possa viver em sociedade». O terceiro é Álvaro Guerreiro («alegada vítima, advogado de Bernardo Duarte no processo contra JR»): «Não presto declarações. No futuro, tudo depende do evoluir da situação. Vou ficar a aguardar os acontecimentos, pois o assunto está a seguir as vias próprias. Para já, fico tranquilo, pois o processo decorre naturalmente».
Se todos afinam pelo mesmo diapasão, incluindo Bernardo Duarte, registe-se, aqui, a ausência de Jacinto Dias, que teve lugar destacadíssimo nas estranhas conversas que Brígida mantivera com Ângelo de Trancoso.
Com a aproximação do fim-de-semana, nos jornais, o que era «alegado» tornou-se, com poucas excepções, certeza absoluta.
Veja-se o caso do lisboeta Tal&Qual, com duas peças dedicadas ao assunto. Na coluna regularmente assinada com o pseudónimo «Pitonisa» por um dos seus jornalistas, com uma fotografia e uma referência expressa a João Raimundo, escrevia-se: «...o Joãozinho fez das suas — compadrios, abusos de poder, falsificações, como o tribunal demonstrou (...) E veio agora a saber-se que se tramava na Guarda um plano terrorista de vingança nas pessoas do juiz que o condenara, de um advogado que o acusara, de três dirigentes do PSD guardense e dois jornalistas. Mas, como ainda não chegámos à Sicília, detido começou por ser o seu motorista. E agora, sempre à conta da conjura, foi a vez do rico.»
No interior, na mesma edição, sob o título «Um espectáculo repugnante», o jornalista e comentador Carneiro Jacinto, ex-assessor de Mário Soares e actualmente na direcção do ICEP — Investimentos, Comércio e Turismo de Portugal, escrevia: «O caso João Raimundo é lamentável a vários títulos. Pela imagem que o PSD/Guarda tem dado, pelo comportamento da direcção nacional e até pela actuação da própria polícia (...) João Raimundo, tudo indica, está a funcionar como um simples peão no meio de várias lutas e intrigas de poder. O seu partido, curiosamente, tem actuado na matéria dando-o praticamente como culpado. Nada e ninguém o tem poupado. O espectáculo tem sido repugnante».
Designando Marília Raimundo como «cacique» e dirigindo outras críticas, políticas, a João Raimundo, Carneiro Jacinto escreve, a seguir: «O processo policial tem contornos obscuros, sobretudo levando em linha de conta alguns dos envolvidos, como o tristemente célebre Ângelo de Trancoso. Não se percebe, a avaliar pelos dados disponíveis, por que se pasaram tantos dias entre a chegada de João Raimundo a Portugal, vindo de Macau, e a sua detenção. Não se percebe por que foi detido em Lisboa, à porta de um restaurante, quando circulava livremente na Guarda. Não se percebe completamente o papel do Ministério da Educação em tudo isto. Se João Raimundo estava suspenso desde a sua chegada de Macau, por que razão se apressou Manuela Ferreira Leite a exonerá-lo, antes de conhecer as decisões da Justiça? O Ministério, neste caso, foi mais papista que o Papa e é capaz de ter feito justiça por mãos próprias.»
E termina, com alguma falta de pontaria: «No conjunto de todo este enredo, não se entende também o papel do próprio PSD e a passividade com que tem acompanhado toda a trama. Querendo dar a ideia de que este caso deve ser tratado de forma exemplar, arrisca-se a que no espírito de muita gente comece a ficar a interrogação sobre quantos Joões Raimundos existirão por esse país fora.»
No Público, a 19, o jornalista Raul Vaz atropela a cronologia e mistura as metodologias com as personagens. Assim: «A história envolve o seu motorista particular, que terá quebrado o sigilo profissional ao denunciar a operação, para preservar uma das potenciais vítimas. Luís Brígida, o motorista, foi detido há três semanas; João Raimundo teve a mesma sorte esta semana, pouco depois de ter sido exonerado pela ministra da Educação». Depois, levanta algumas dúvidas, como setas dirigidas ao PSD: «o PSD conhecia, ou tinha a obrigação de conhecer, o comportamento do seu herói. Ele era o perfil a seguir na Guarda, foi ele quem, há um mês, no pleno uso das suas funções, recebeu Cavaco Silva no último Congresso dos TSD. Hoje, serve apenas para o PSD mostrar que “ninguém está acima da lei”. Agora, serve de cordeiro para o despudor da ambição.»
No Primeiro de Janeiro, no domingo, é que não há mesmo dúvidas nenhumas: «João Raimundo (...) protagonizou o escândalo da semana, ao descobrir-se que encabeçava uma pesada rede de tráfico de influências, o que o levou a, presumivelmente, acabar a dirigir uma operação de âmbito terrorista contra interesses e pessoas (...) João Raimundo é o exemplo do indivíduo que não consegue exercer o poder de uma forma democrática mas sim para seu uso e benefício pessoal.»
O Expresso, nesse fim-de-semana, é o único jornal a acolher, além da tese da «lista negra», outras hipóteses, apesar de trocar um apelido de Brígida (Rogado) por outro (Rosado):
«... Meios afectos à defesa de Raimundo consideram que não está suficientemente esclarecido o motivo que levou o ex-MDLP a denunciar o plano e defendem que ele poderá estar a agir por motivos menos nobres, eventualmente subordinados a uma estratégia que visaria a eliminação política do casal Raimundo.
«Outra das teses apresentadas pela defesa é a de que tal plano seria mais o resultado da imaginação de Rosado e da vontade de agradar ao seu patrão, dado ser conhecedor das rivalidades entre estes e as potenciais vítimas. Segundo esta versão, as alegadas indicações de João Raimundo não passariam de meros “desabafos” que o mesmo teria tido diante do seu motorista, o qual, movido por um desejo de agradar, teria então tomado a iniciativa de levar à prática o que supunha ser a sua vontade. Segundo Rosado revelou às autoridades, também teria ouvido a deputada Marília Raimundo dizer que havia quem merecesse “uma boa sova”, embora adiantando logo que era “contra isso”. A deputada e ex-governadora civil da Guarda ter-se-ia referido, naqueles termos, a Jacinto Dias, seu adjunto no Governo Civil.»
Os autores do texto, António Marinho e Rui Pereira, observam, depois, que «a tese do excesso de zelo não parece, porém, sustentável, dadas as elevadas quantias em dinheiro que o mesmo movimentou, e cuja origem não soube justificar». A explicação para a proveniência do dinheiro (o pai de Luís Brígida) só surgiria depois, bem como as alusões ao conflito, em torno de uma mulher, que opunha Brígida e Jacinto Dias.
Mesmo assim, o jornal dá voz a uma recém-chegada «fonte judicial», cuja intervenção vai, novamente, dar força à tese da acusação: «A Justiça deverá “cuidar exemplarmente” deste assunto. “Trata-se de evitar a sicilianização da vida portuguesa”, disse, antes de classificar os envolvidos como sendo membros de uma associação criminosa “com elevada organização e perigosidade”.» Quem diz coisas tão sérias? Nunca o saberemos. O ano-nimato das «fontes» permite que uma afirmação tão grave fique órfã de pai e mãe.
Nove dias depois da prisão de João Raimundo, a 24 de Novembro, o caso merece as atenções pormenorizadas da revista Visão pela pena de Lurdes Feio em cinco páginas de reportagem sob o título «Crónica de uma vendeta anunciada», numa descida ao grau zero da «investigação» jornalística.
Sem acrescentar muito de relevante ao que seria a investigação em curso e sem que o estilo justifique a invocação de uma novela do escritor Gabriel Garcia Marquez no título, o texto está pejado de considerações que, pouco depois, hão-de motivar um pedido de desculpas à família assim que se perfila no horizonte um processo por difamação.
E torna-se, até, pela relevância da publicação, um dos melhores exemplos de como a Comunicação Social assumiu — em simultâneo — o papel de advogado de acusação (nunca de defesa...), de juiz e de carrasco que leva a família toda ao cadafalso.
Por exemplo: «Que se há-de dizer à filha de um homem (João Raimundo) que, ainda há pouco, era um cacique todo-poderoso e que, de um momento para o outro, passou a andar pelas boas do mundo como contratante de jagunços para promover vendetas pessoais à boa maneira siciliana?» E: «Desta vez, a vendeta pretendia atingir os culpados de uma suposta traição à mulher.»
E sobre o ambiente na cidade: «Nos últimos meses, a cidade beirã tem vivido em estado de choque, mergulhada num clima de ódio e ameaças. Algumas famílias não dormem desde Julho uma noite descansada. Telefonemas anónimos de madrugada, ameaças de agressões físicas e até de raptos de crianças, automóveis espatifados — há de tudo um pouco. Bernardo Duarte, por exemplo, desde há muito que deixou de ouvir rádio no carro: arrancaram-lhe a antena, além de lhe terem retalhado a chapa com um canivete.»
Um dos jornalistas que, numa primeira fase, aparece associado à «lista negra» é também citado: «Gabriel Correia, um dos jornalistas ameaçados, confirma que desde há meses vem recebendo telefonemas anónimos. Está de baixa, em casa, e dificilmente poderá regressar à Rádio Efe onde trabalhou nos últimos anos. Tem sido perseguido pela direcção da estação, que por sua vez está ligado ao jornal Terras da Beira. Numa e noutro, o repórter foi atacado. Quando lhe perguntamos o que tenciona fazer, encolhe os ombros e diz: “Não sei, não tenho nenhuma proposta de trabalho. Se a receber, estudarei o assunto.”»
Pouco tempo depois, Gabriel Correia entrará em cena como dirigente da Rádio Altitude e, aí, torna-se um verdadeiro acusador público contra o casal Raimundo... antes de ser objecto de numerosos processos por difamação que lhe são movidos por Marília. A Rádio Altitude era, ao tempo, propriedade, por herança histórica, do Hospital Distrital da Guarda, dependendo, administrativa e politicamente do Governo por interposto Ministério da Saúde. A nomeação deste jornalista foi feita, aliás, pelo então director do Hospital, Valério do Couto, ex-vice-presidente da Comissão Política Distrital do PSD da Guarda quando Marília era a líder do PSD local. E que apoiou, depois, Álvaro Amaro.
E a Visão continua, sem deixar de fazer referências à vida pessoal de João e Marília Raimundo: «Mas há outras estranhas coincidências neste caso. Por exemplo, o que terá levado o secretário de Estado do Ensino Superior, Pedro Lynce, a convocar João Raimundo para uma reunião de trabalho em Lisboa, precisamente na terça-feira em que este seria preso? “Obrigaram-no a vir até à capital para evitar prendê-lo na terra onde todos os conhecem. Seria um vexame ainda maior”, dizem algumas fontes.»
Qualificando João Raimundo como «um vulgar bandoleiro que o partido do poder agora pretende sacudir», a autora do texto afirma, trocando, sem problemas, as datas todas: «Mas o favor que mais escândalo provocou foi quando Marília Raimundo, então secretária de Estado no Ministério da Educação, promoveu o marido a presidente da Comissão Instaladora do Instituto Politécnico da Guarda, através de um decreto que lhe atribui as qualificações académicas que ele, por direito, não possuía...»
Bem sentenciara o Diário de Notícias, a 20 de Novembro: «João Raimundo é a primeira vítima séria do poder político dos jornalistas».
Em Dezembro, a 13, os advogados de João Raimundo, Castanheira das Neves e Nuno Godinho de Matos interpelam o Tribunal da Covilhã, pedindo o fim do regime de prisão preventiva do arguido.
É um texto de 20 páginas onde se invocam não apenas circunstâncias históricas (a separação entre o poder judicial e o poder policial, aqui muito convergentes...) mas as fragilidades da teia de suspeitas que entretanto se formara para rejeitar a ideia de que seria necessário manter detido um indivíduo que, no máximo, poderia ser acusado da eventual tentativa de prática do crime de ofensas corporais e «nunca» do crime de terrorismo.
Nas razões circunstanciais que evocam, Castanheira das Neves e Nuno Godinho de Matos observam que «como crime (repete-se, se existisse crime, porque não há) poderia estar em causa quanto a um arguido diverso do requerente (porque quanto ao requerente é óbvio que não há crime), uma tentativa de ofensas corporais e mais nada» e recordam que «esta é realidade confirmada pela leitura do auto de declarações do arguido».
E acrescentam: «... Escreveu-se que o arguido ficava preso porque se iriam ouvir outras pessoas. O que, salvo o devido respeito, constitui, no mínimo, um grande equívoco, até porque é ilegal violando expressamente a lei, o artigo 202.º do Código Penal».
Os advogados anotam que «”praticar quaisquer crimes contra a vida, a integridade física ou a liberdade das pessoas” não tem nada a ver com “dar bofetadas ou uns murros” num cidadão. É óbvio que ninguém tem o direito de dar bofetadas, ou mesmo simples empurrões nas outras pessoas, mas confundir “bofetadas” com terrorismo é um exagero que não pode ser cometido, nem mesmo em sede de processo penal».
«Como é evidente e resulta de toda a letra do preceito», acrescentam, «o tipo legal que prevê o crime de terrorismo é destinado à repressão de actos violentos organizados por entidades políticas, ou simplesmente politizadas, que têm como prática constante a violência sobre os cidadãos em geral, ou sobre grupos de cidadãos em particular, quer por razões rácicas, quer étnicas, quer de credo político ou religioso. Este tipo legal jamais se destina aos mesquinhos ajustes de contas de dois ou mais cidadãos, exprimidos em bofetadas ou em murros. O crime de terrorismo exige uma componente de organização e violência, totalmente incompatível com matéria dos actos. Se assim não fosse, deixaria de existir o crime de ofensas corporais. Só que, neste caso, como não chegou a ser cometido crime algum, não tínhamos moldura legal que permitisse o recurso à prisão preventiva nem recurso ao “elixir” da “associação de criminosos”, que se pensava já ter caído em desuso.»
Castanheira das Neves e Nuno Godinho de Matos recordam ainda que «não existe o mínimo receio de fuga», tendo João Raimundo regressado de Macau «depois de os jornais, no âmbito das normais fugas de informação — de que ninguém é responsável — mas que sucedem constantemente — já o tratarem por terrorista, há mais de uma semana».
Interrogam-se sobre «como pode o arguido ir perturbar a polícia, ou o Ministério Público, com todos os seus meios de investigação e de persuação» e insistem em que João Raimundo «não pode ir destruir provas, porque os factos, que se pretende que tenham existido, já existiram e, para lá das gravações policiais, nada mais poderá existir, pois tudo se reporta ao passado, e a um eventual “crime sob a forma tentada”, sem actos de consumação, pelo que não existem indícios materiais a esconder ou destruir, para lá dos factos existentes no processo.»
E finalizam: «Continuar a actividade criminosa é impossível porque não se pode continuar a fazer o que nunca se fez. E, além disso, porque mesmo que o arguido algum dia tivesse desejado “dar umas bofetadas” noutro cidadão da República (o que nunca sucedeu), como é óbvio, com este processo a recorrer, jamais o faria, como decorre de todas as regras de experiência comummente aceites.»
Mas a decisão é negativa e João Raimundo é mantido preso.
Em 13 de Dezembro, as gravações das conversas entre Luís Brígida e Ângelo de Trancoso estavam passadas a escrito e todos os homens constantes da «lista negra» tinham sido ouvidos pela Polícia Judiciária, com as suas declarações a formarem um conjunto harmónico. A tese da «lista negra» e da vendetta banalizara-se em tudo quanto é Comunicação Social. E o próximo alvo a abater é Marília Raimundo que, afinal, consta da verdadeira lista negra — aquela que os conspiradores conceberam.

PARTE II

A CONSPIRAÇÃO

CAPÍTULO 4

A ESCOLHA DAS ARMAS: BRÍGIDA
E O TERRORISTA
João Raimundo não foi preso por acaso ou porque tivesse feito — ou quisesse fazer — algo que obrigasse ao seu encarceramento. Foi preso porque o presumido móbil do alegado crime a isso obrigava e quem preparou tudo sabia-o: à luz da legislação então vigente, o tráfico de droga era, depois do terrorismo, o único crime que convidava à prisão preventiva. E afastar João Raimundo, e depois Marília, à cautela, era o objectivo dos autores da tese da «lista negra». Neste duelo entre o acaso e a necessidade, só faltava escolher as armas que iriam tornar credível a acusação.
E a escolha recaíu no homem (Luís Brígida) que tinha motivos para querer tirar desforço de um dos futuros membros da «lista negra» e no outro que entrava em cena como guest star para o efeito: o destino e a argúcia elegeram um motorista e um cadastrado como armas escolhidas pelos conspiradores que estavam a tecer a teia que enredaria João Raimundo.
O motorista era Luís Manuel Brígida Rogado, de 34 anos. O cadastrado foi Ângelo do Nascimento, também conhecido por Ângelo de Trancoso, ligado à extrema-﷓direita em 1974 e em 1975, com cadastro prolongado e projectado, em Novembro de 2000, à mediática condição de «agente infiltrado» ao serviço da PJ. O primeiro foi à procura de alguém que pudesse atacar um seu rival e encontrou-o na figura de Ângelo do Nascimento.
O relacionamento entre o motorista e o terrorista constitui um dos pontos centrais do caso da «lista negra». Essencialmente porque Ângelo do Nascimento, em articulação com a PJ, se mune de um gravador para registar as conversas que vai manter com Luís Brígida. Sem qualquer tipo de autorização judicial que o permitisse... a ele ou à polícia.
De tal modo que, apresentadas como prova, seriam as gravações — postas em causa, de imediato, pelo advogado Nuno Godinho de Matos — a dar cabo de toda a acusação. Inadmissíveis (de acordo com o Supremo Tribunal de Justiça), as gravações nem sequer foram consideradas no julgamento de João Raimundo e de Luís Brígida e, provavelmente, nem deveriam por isso figurar aqui. Mas a leitura das conversas nelas registadas (para as quais não há, no entanto, espaço que chegue) é exemplarmente ilustrativa de como Ângelo do Nascimento levou Brígida a dizer coisas que, acompanhadas por certas declarações vindas de pessoas que conheciam os meandros da lei, podiam ser utilizadas contra ele... e contra João Raimundo.
E é nessa medida que aqui se regista o modo como Ângelo gravou as conversas, estimulou o motorista, lhe deu importância e o pôs a dizer mais do que o bom senso recomendaria. Com o apoio entusiasmado da Polícia Judiciária.
Natural de Marialva, concelho de Meda, Luís Brígida estudou na mesma escola em que foi professor João Raimundo em 1977, na Guarda. Merecedor da confiança do futuro presidente do IPG, ainda foi convidado por João Raimundo para trabalhar na firma da qual era sócio o seu antigo professor, a Morgado & Raimundo.
Trabalhou aí até 1992, entrando para o IPG como auxiliar administrativo em Fevereiro do mesmo ano, ou seja sete anos depois de João Raimundo ter trocado a vida empresarial pela administração do IPG.
No IPG, começa a trabalhar como motorista de João Raimundo em 1992, ganhando a sua total confiança. Sem se escusar, nas horas livres, a transportar João ou Marília, Luís Brígida põe-se, também, ao serviço do PSD e acaba por servir Marília Raimundo como voluntário quando a então governadora civil, trocando o cargo pelo de dirigente do PSD e o carro do Estado pelo seu próprio carro, se desloca a diversas iniciativas partidárias. Brígida ganha, assim, uma mobilidade que, de outro modo, não teria e rapidamente ganha também a visibilidade de alguém que é suficientemente importante para poder ser motorista pessoal de duas personalidades públicas da cidade. E é de supor que a importância que adquire lhe abra algumas portas...
É no Verão de 1994 que Luís Brígida entra em conflito com Jacinto Dias. Este ex-adjunto de Marília Raimundo no Governo Civil da Guarda, de origem funcionário do IPG, que merecera ainda a confiança de Marília para poder ser nomeado director do Centro Regional de Segurança Social, é, presidente da Comissão Política Concelhia do PSD da Guarda.
Mas esse conflito — essencial para o desenrolar desta rede de malhas apertadas — não tem, no entanto, razões políticas. É, apenas, pessoal: ambos aparecem a disputar os favores amorosos de uma funcionária do Centro Regional de Segurança Social. Toda a gente sabe mas a cidade ignora-o, fechando os olhos, no seu conservadorismo, a essa rivalidade que une, da pior maneira, dois homens casados. E a PJ, estranhamente, também vai ignorá-lo, apesar da sua relevância para todo o caso.
A disputa é cerrada. Brígida, sem estatuto para competir com Jacinto Dias, vai alimentando obscuros desejos de vingança, que se corporizam num único objectivo: Jacinto Dias tem que ser castigado fisicamente. Mas não por ele, claro.
Para concretizar os seus objectivos, Brígida procura um taxista seu conhecido, Octávio Milagre Mendes, a quem pergunta se conhece alguém capaz de «dar umas bengaladas» numa pessoa, e apenas numa, que não nomeia.
Octávio Milagre Mendes parece desinteressar-se e indica-lhe o nome de Ângelo do Nascimento, a quem Brígida se dirige, numa correnteza de conversas por onde desfilam — por sugestão de Ângelo — a maior parte dos nomes que, mais tarde, integrarão a chamada «lista negra» tal como ela aparece, primeiro, na Comunicação Social e, depois, nas acusações oficiais que vão tomar por base as gravações dessas conversas de uma forma juridicamente muito controversa.
As gravações — das conversas entre Brígida e Ângelo — são feitas pelo próprio Ângelo, e transcritas pela PJ a partir 20 de Outubro de 1994. É uma operação de iniciativa privada, nunca sujeita à apreciação de um tribunal para saber da sua legitimidade, que a PJ apoia, e estimula, com agentes a fotografarem os encontros dos dois homens.
Ilegais por terem sido feitas sem consentimento, suspeitas de poderem ter sido truncadas, as gravações são, no entanto, um manancial indispensável de informações sobre a estratégia dos homens que quiseram afastar João Raimundo... a partir de um devaneio talvez mais sexual do que sentimental de Luís Brígida.
E como é que uma «história de saias» inclui mais gente do que o rival directo do ofendido e se transforma numa «lista negra» de contornos mal definidos? A resposta vai surgindo por entre os diálogos, vernacularmente coloridos, de Brígida e do cadastrado.
Ângelo, aparentemente bem industriado e arguto, vai-﷓lhe puxando pela língua, simulando mesmo uma agressão a Jacinto Dias e, segundo garante, aceitando dinheiro, mil contos, que o pai de Luís Brígida adiantara ao filho para fazer obras na sua própria casa, como o verifica um agente da PJ... que participa nas investigações até certo ponto.
Para Brígida, Ângelo do Nascimento, experiente, de linguagem e recursos fáceis, aparece em cena como a escolha ideal e é a arma perfeita para atacar Jacinto Dias. Talvez pela aura de homem de acção que trazia consigo: também conhecido como Ângelo de Trancoso, este homem tinha no seu currículo a participação em assaltos a sedes de partidos de esquerda em 1975 e no extinto Movimento Democrático de Libertação de Portugal (MDLP), organização de extrema-direita que recorrera ao uso de armas e de bombas, na mesma altura, e que aparece implicada nos incidentes político-militares de 11 de Março de 1975, em que o General António de Spínola se vê também envolvido.
O seu cadastro, na PJ da Guarda pode ser descrito como «negro» mas não levanta dúvidas aos homens da PJ da Guarda sobre a pessoa que iriam apoiar tão diligentemente.
Seria um homem acima de toda a suspeita para esses agentes? Talvez... Mas a classificação policial identifica-o como «falsif. (docum.autom.)uso/» e a ficha que consta do processo contra João Raimundo inventaria no seu currículo 11 processos por razões diversas e alinhadas sem preocupações cronológicas: crime de extorsão (em 1986), viciação de viatura automóvel (1979), tráfico de divisas (1977), corrupção visando a fuga de presos (1983), suspeita de crimes de alta violência entre 1974 e 1985 (1986), tráfico e viciação de veículos (1991), furto com arrombamento em estabelecimento (1985) e burla em 500 mil pesetas (1985).
Esta ficha não terá levantado dúvidas ao agente José Casaleiro e ao subinspector Manuel Portugal, que conduzem pormenorizadamente as inquirições dele e dos homens que ficarão sendo conhecidos como membros da «lista negra». E é a eles que Ângelo conta o que terá acontecido. E a quem apresenta as gravações das conversas que mantém com Brígida, sem que este saiba que elas estiveram a ser gravadas.
Vejamos como tudo aconteceu.
Em 12 de Julho, Ângelo de Trancoso — de acordo com o auto de inquirição de testemunha com data de 18 de Outubro de 1994, registado às 17.30 na PJ da Guarda — é contactado pessoalmente pelo taxista Octávio (Mendes Milagre) de A-do-Cavalo, em Vila Nova de Foz Côa, cerca das 16 horas, à saída do tribunal da localidade.
Octávio ter-lhe-á dito que dias antes fora sido contactado «por um tal Luís», motorista do presidente da comissão instaladora do IPG, que pretendia arranjar alguém «que fosse capaz de “partir um braço” a uns “artistas da Guarda”».
Conta a PJ: «O depoente (Ângelo) reagiu logo pela negativa, dizendo mesmo “diz lá ao gajo que tenha juizo senão ainda leva nos cornos”, isto no pressuposto do depoente ter pensado que esse assunto poderia estar relacionado com algum amigo seu. No entanto, o depoente pensou melhor e achou por bem fornecer o seu número de telefone ao Octávio para que este o transmitisse ao Luís, isto porque o depoente ficou com curiosidade e quis saber mesmo a que “artistas” se referia o tal Luís.»
O encontro foi marcado «cerca de oito dias mais tarde» e é nessa reunião, à beira do restaurante «28», que Brígida avança com as suas pretensões, gravadas por Ângelo com um microgravador de bolso e transcritas num auto com data de 20 de Outubro de 1994.
Jacinto Dias é um alvo, de imediato mencionado por Brígida.
Ângelo diz que não conhece. «É o da Segurança Social», insiste Brígida, «o gajo que manda lá na Segurança Social, o director daquela merda». E «esse é que tem que as mamar». Não aparece nenhuma referência, como se dirá depois, à ideia de «partir um braço» a Jacinto Dias. Apenas, o burlesco «tem que as mamar».
E Brígida pormenoriza, relativamente a Jacinto Dias: «Bem, a matrícula do carro é BX... BX-99-45... Eu acho que é assim, não tenho a certeza absoluta, foi uma gaja que mo disse». Indicando Jacinto Dias como estando no Centro Regional de Segurança Social, Brígida passa à localização da casa da sua potencial vítima, estimulado por Ângelo: «É uma casa logo ali, ora bem, quem que me disse que era Valcovo e que era uma casa à beira da estrada (...) a mim quem me disse foi uma gaja que ele anda a papar».
Combinando um código para poderem falar, Ângelo e Brígida começam a deitar contas à vida, com Ângelo a falar em dois homens que tem que trazer do Porto e Brígida a contar como vai transportar Marília Raimundo.
Estamos a páginas 6 da transcrição e esta é a primeira vez que surge uma referência a um Raimundo. Mas apenas na qualidade de passageiro do carro que Brígida vai guiar. E pode ver-se, logo de seguida, como os mandantes invocados por Brígida não são um (João?) nem dois (João e Marília) mas três!
A propósito do dinheiro, Brígida diz que já tem mil contos em seu poder e que arranjará mais, embora não mostre saber quanto: «Eu não sei quanto lhes vou sacar aos gajos. Ora bem, eles estavam na disposição de dar 500 contos cada um... São três.» Três?
A páginas 10, Ângelo e Brígida já estão de novo em contacto. O primeiro diz que «o homem ontem acabou» e que um dos rapazes do Porto, que Ângelo diz ter arregimentado, «ainda o feriu».
E é Ângelo que apresenta uma nova proposta: «Portanto, se o senhor quisesse, podia-se tratar agora dum ou doutro dos outros. Do Granja ou do outro». É esta a primeira vez que aparece uma referência ao juiz Granja da Fonseca. E só na boca de Ângelo, nunca na do motorista.
Brígida responde de forma algo desinteressada: «Ah, pois. O Granja é lá mais para a frente, isso é lá para o Natal.»
«E o Guerreiro?», insiste Ângelo, visando, desta vez, Álvaro Guerreiro, o advogado de Bernardo Duarte, a que Brígida também não fizera qualquer referência.
«O Guerreiro, não», responde Brígida, que diz preferir João Gonçalves. E, quando Ângelo lhe fala num corregedor (o juiz Granja da Fonseca), Brígida recua e já não diz que não nem que sim.
A conversa mostra, de forma muito clara, que não havia ordens de ninguém para que se atacasse este ou aquele. E que os nomes são sempre sugeridos por Ângelo. Que vai insistindo: «... Mas o senhor faça um telefonema e veja-﷓me, que o rapaz ainda está comigo, não é, até vai comigo, não é? Depois, se for preciso, se ele entender que sim, era melhor porque evitava de cá voltar (...) Se pudesse ser o corregedor agora, era bom... Pronto, mas telefone lá para o chefe a ver o que é que ele diz (...) era porreiro, porque eu tenho cá o homem, está a perceber? Ou se houver aí outro, o senhor disse que havia mais, diga... Já que estamos com a mão na massa, fazia-se tudo...»
Mas Brígida esquiva-se.
No encontro seguinte, Ângelo e Brígida trocam pormenores sobre a suposta agressão de que teria sido vítima Jacinto Dias, com um cavalo marinho. E Ângelo volta a insistir, invocando o homem que teria a trabalhar consigo: «... o gajo estava ansioso, porque queria... uma vez que cá estava e tal, podia fazer...».
Como que tentado, Brígida responde: «Em relação a isso ainda é cedo...» Mas mais não diz. E a conversa, em meias-palavras, torna-se enigmática... mas não tanto que não se perceba como Ângelo introduz os nomes das potenciais vítimas: «Eu acho que o Granja era... uma altura boa... que é pró alvo... ficar intimidado...»
A conversa evolui, seguidamente, para outros notáveis locais, que ambos conhecem, mas depressa volta ao mesmo... e sempre na boca de Ângelo.
Ângelo: «Só que para o Granja tem de ser mais bem montado, não é?»
Brígida: «Pois é, pá, não pode ser assim, aí é que tem de ser mesmo bem montado.»
Ângelo, a tomar, novamente, a iniciativa de falar em nomes de apontar para João Raimundo: «Diz à... tem de se dizer ao Dr. Raimundo que a coisa é feita como deve ser. Eles conhecem-me bem, já sabem.» E chega a oferecer-se: «Se for preciso eu falar com eles, eu falo.»
Mais à frente, ambos voltam a Jacinto Dias e surge, com mais nitidez, a personagem que liga Brígida a Jacinto Dias, depois de Ângelo se queixar de ter tido dificuldade em localizar a sua alegada vítima porque «você estava mal informado com a gaja, informou-o mal, a casa não era aquela».
Responde Brígida: «Pois, a gaja disse-me que era uma casa avermelhada em Valcovo.»
Ângelo: «A gaja não pode dar uma informação!?»
Brígida: «Você conhece-a.»
Ângelo: «Quem é?»
Brígida: «... É uma assistente social, Manela.»
Ângelo, mais íntimo: «Nela?»
Brígida: «Manuela ou Nela, tem um Panda alaranjado.»
Ângelo: «Assistente social, assistente social. Onde é que trabalha?»
Brígida: «Lá em Foz Côa.»
Ângelo: «Oh, naquele... naquele...»
Brígida: «Sei que trabalha lá em Foz Côa, no Centro Regional... não sei quê, delegação regional, Foz Côa, centro regional ao pé do Tribunal, por trás vê que há uma Casa do Povo e não sei quê, por baixo tem lá um letreiro do Centro Regional e ela tem um Panda e mora ali ao pé da Marina, naquele prédio logo a seguir... mas que cheguei lá ir dar a foda numa soleira... é essa o meu contacto...»
Ângelo: «E essa é que lhe deu a informação?»
Brígida reitera: «Foi essa que me deu a informação.»
A conversa passa, de seguida, para o que teria acontecido a Jacinto Dias, com Ângelo a explicar: «É que podia, bem podia ser mais, braços partidos... um gajo nem sabe...»
Entre os vários notáveis citados, nesta conversa que se torna cada vez mais densa, aparece Júlio Sarmento, presidente da Câmara Municipal de Trancoso, também do PSD, cuja referência permite aos dois interlocutores fazerem alguns exercícios de análise política que parecem ter sido utilizados pelos agentes da PJ para chegarem a conclusões... tão interessantes como os exercícios orais de Brígida e de Ângelo.
Diz Brígida: «Quem é contra ela [Marília Raimundo] é o Júlio Sarmento, que agora andou-lhe a lançar a rede para voltar a ele... a eles, porque o Júlio Sarmento parece que já anda em guerra com eles, com os outros.»
Ângelo: «Mas também se porta mal, o Sarmento?»
Brígida: «Também se portou mal.»
Ângelo: «Portou?»
Brígida: «Carago, esse foi o maior porco de todos os tempos, caralho!»
Ângelo: «Ai é?»
Brígida (na pele de analista político): «Esse gajo. Sabe o que é que disse quando foi na votação entre ela e o Álvaro Amaro para a distrital, para provar que voto contra a Dra. Marília... está aqui o meu voto e mostrou a toda a gente... esse gajo é porco, mas agora disse-me ele na... em Sortelha que estava a conversar com ele e tal e não sei quantos e ele estava a dizer que já não pode ver os gajos. Prontos, já está arrependido do que fez. Porque ele tinha prometido ao Dias Loureiro [Ministro da Administração Interna], isso sei-o eu, já o sabia antes, ele tinha prometido ao Dias Loureiro que votava na Marília, votava nele, porque ao votar na Marília estava a votar nele; aquilo é um PSD loureirista e nogueirista [Fernando Nogueira, Ministro da Defesa e sucessor imediato de Cavaco na liderança do PSD em 1995], é a guerra do partido, e o Cavaco, como sempre, é que está a dominar aquelas merdas. Nogueiristas de um lado, loureiristas doutro, a Marília é loureirista, Loureiro, o Dias Loureiro telefonou a uma série de gajos, um deles foi o Sarmento, para votarem nela porque, pronto, com o outro gajo não queria nada porque sabia que eram os dois da secção do Nogueira...»
A conversa é recorrentemente circular: o ponto de chegada é sempre a hipótese, avançada por Ângelo, de que há mais gente a abater, sempre a pretexto de Jacinto Dias: «... e há o outro!»
«Eu tenho a certeza que aquele é só para ver o que é que isto dá e depois é que...», diz Brígida.
E torna Ângelo: «O Granja é que é de certeza, não é?»
Responde Brígida: «...eu vou falar com ele... antigamente, sei eu que queriam...»
E insiste Ângelo: «E ao outro gajo, se quiserem também, digam (...) Quando começarem a mamar, agora por tabela, eles ficam todos fodidos e... acabam com a política».
Comenta Brígida: «Acabam com as politiquices de merda... que anda aí esse porco do caralho.»
E apressa-se Ângelo: «É uma vergonha, então do mesmo partido!»
Já a despedirem-se, Ângelo não regateia os seus préstimos por uma última vez: «Se quereis mais é mais... aqui não há cá favacas.» E, para ser mais convidativo, reforça que não há problemas de dinheiro: «Você diz, eh pá, o dinheiro não importa, o dinheiro não está em causa, quereis mais é mais, agora é melhor que nunca, até porque ele disse-lhe tudo terminou. Não terminou. Então mas agora é todos os dias. Não terminou. Ainda vai ser mais vezes e ele bom. Pouca conversa com queixas.»
Brígida acolhe bem a determinação de Ângelo. Mas este, que contara com a benevolência da Polícia Judiciária para conseguir que os seus agentes fotografassem alguns dos encontros, já estava prestes a entregar Brígida. Enquanto os homens da «lista negra» se organizavam e começavam a contar à Polícia Judiciária a sua própria versão da história para acabar de tecer a teia destinada, por enquanto, ainda só a João Raimundo.

CAPÍTULO 5

OS HOMENS DA «LISTA NEGRA»
As gravações, que não foram aceites como meio de prova, são, quando conjugadas com os documentos que se lhes sucedem cronologicamente e com certos depoimentos, essenciais para se perceber como se transformaram no pilar fundamental que podia sustentar a acusação... se os investigadores não quisessem (ou não pudessem?) ir mais longe.
De posse das gravações, que até poderão não ter sido bem ouvidas, o agente Casaleiro, da PJ da Guarda, dirige uma exposição ao subinspector da PJ da Guarda, Manuel Portugal, em 11 de Outubro de 1994, para expor já a base da teoria que a acusação iria perfilhar
O crime que se apurava, segundo J. Casaleiro, era de coacção, com três situações «perfeitamente distintas»: «Uma directamente relacionada apenas e só com o magistrado Dr. Juiz Corregedor Granja da Fonseca, outra que engloba os Drs. Soares Gomes, Jacinto Dias, João Gonçalves entre outros e, por último, a relacionada com o advogado Dr. Álvaro Guerreiro.»
E o agente Casaleiro tipifica as situações:
«A primeira insere-se na polémica gerada pelo julgamento do Dr. João Raimundo e outros, relacionada com questões directamente ligadas ao Instituto Politécnico da Guarda e, assim sendo, o visado é o Dr. Juiz Granja da Fonseca — Juiz Presidente do Tribunal Judicial da Guarda — que, pela circunstância de ter resistido a pressões de vária ordem e ter, em sede de Tribunal Colectivo, proferido sentença condenatória, estará ameaçado de eliminação pura e simples, se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, para onde foi interposto recurso, confirmar ou agravar a condenação.
«A segunda tem contornos iminentemente políticos. Ocorre, porém, no decurso do julgamento atrás aludido.Nesse espaço de tempo, decorreram eleições para a Comissão Distrital do PSD da Guarda, até essa altura dominada pelo Dr. João Raimundo [que, no entanto, não tinha actividade partidária para lá da direcção dos TSD] e sua esposa Marília Raimundo.»
Referindo-se à «criação» de duas facções (Marília Raimundo e Álvaro Amaro), J. Casaleiro envereda pela análise política e anota, a seguir, que «em função das divergências políticas a que se fez referência, alguns apoiantes da primeira deslocaram-se, dando o seu voto à facção apoiante do Dr. Álvaro Amaro, que acabou por ganhar as eleições. Neste último grupo, englobam-se o Dr. Jacinto Dias, o Dr. Soares Gomes, Dr. João Gonçalves e outros. Por essa sua tomada de posição e como mero acto revanchista, considerado “traição”, estarão também ameaçados, não de eliminação, mas a serem vítimas de agressões físicas que os façam recordar a sua falta de lealdade à primeira facção.»
Quanto à «terceira e última», J. Casaleiro coloca Álvaro Guerreiro no centro das atenções «pelo facto de ter sido um dos advogados de acusação no julgamento a que foi sujeito o Dr. João Raimundo e outros», aludindo ao «caso Bernardo Duarte».
Depois, apresenta a sua conclusão, embora remeta para outrém uma afirmação sobre o carácter do visado: «Facilmente se poderá depreender que o Dr. João Raimundo é o grande vencido em toda esta sucessão de factos. Sendo pessoa de carácter profundamente revenchista, ao que nos garantem, não surpreenderá que seja o maior interessado e, assim, o principal mentor das acções de violência e intimidação que se propõe desenvolver, em virtude de perda de poder político e influência sobre terceiros.»
À margem, J. Casaleiro anota que «também quanto nos informaram, [João Raimundo] dirigirá o citado instituto com “mão de ferro”, tipo “ditador”, do género de “quem não é por mim é contra mim”, o mesmo parecendo acontecer a nível político partidário.» Note-se que a fonte não é citada e a informação entra em contradição com tudo aquilo que colegas, imprensa e alunos diziam de João Raimundo, que não era presença nada assídua na organização local do PSD.
Depois, o agente dá como certo que ele «tem no seu motorista o homem de mão para os chamados “trabalhos sujos”, sendo este último quem foi encarregue de efectuar contactos que permitissem conseguir alguém que pudesse dar execução às acções planeadas».
E afirma: «Também, tanto quanto se sabe, o timing para a execução das acções planeadas terá sido alterado, passando a ser prioritário tratar primeiro dos “traidores” e só depois do juiz, porque interessará, também, saber o resultado do recurso apresentado ao Supremo Tribunal de Justiça.» Ou seja, não é visto como importante o facto de ter sido Brígida a falar no nome de Jacinto Dias, sendo Ângelo o autor da referência aos outros, juiz incluído. De tudo isto conclui o polícia que há uma lista de vítimas a abater e que é mandante João Raimundo.
Esta tese vai ser corroborada pelas declarações dos homens da «lista negra» em uníssono.
Significativamente, o primeiro a ser ouvido é o juiz Granja da Fonseca, no próprio dia 11 de Outubro, num desfile de depoimentos que só conhece uma certa acalmia com a prisão de Brígida no dia 27 de Outubro.
No seu depoimento, o juiz diz que ainda corria o julgamento do «caso Bernardo Duarte» (ou seja, antes de Fevereiro desse ano de 1994...) quando, por Álvaro Guerreiro, «foi informado que o Dr. Raimundo, através de um seu funcionário, mais concretamente o motorista Luís, havia contactado um indivíduo na zona de Foz Côa» para o «eliminar». Informado por Álvaro Guerreiro, que era parte interessada, note-se.
E continua: «Algum tempo depois, terminado já o processo em 1.ª instância, foi [o juiz] avisado pelo Dr. António Machado, conservador do Registo Predial da Guarda, que, segundo informação que lhe havia sido prestada pelo Dr. Fernando Lopes, conservador do Registo Predial de Trancoso, o Ângelo de Trancoso havia sido contactado pelo Luís, motorista do Dr. Raimundo, actuando este Luís em nome do referido Dr. Raimundo para que o dito Ângelo eliminasse o depoente, mediante quantia a fixar pelo Ângelo, não havendo limites no “preço”.» Ou seja, não havia segredo sobre o assunto, que seria, praticamente, do conhecimento público.
Granja da Fonseca diz que julgou que essa situação não fosse recente mas, «alguns dias depois, já no início das férias judiciais» (depois de 15 de Julho, portanto) é avisado por Álvaro Guerreiro de que «as insistências continuavam por parte do Luís», declarando-se, entretanto, Álvaro Guerreiro também como «visado».
E prossegue o auto de inquirição: «No entanto, como havia um bom relacionamento entre ele [Guerreiro? Granja da Fonseca?] e o Ângelo de Trancoso, estava em crer que o Ângelo poderia não actuar contra ele, mas que se o Luís visse que o Ângelo não fazia o que ele pretendia, podiam ser contactados outros indivíduos, para eliminar quer o depoente [Granja da Fonseca] quer o Dr. Guerreiro. Garantiu ainda que o Ângelo já lhe tinha dado esta informação há uns tempos antes e que ele Álvaro Guerreiro lhe tinha pedido que quando o Luís o contactasse arranjasse algumas provas que permitissem, se necessário, haver elementos que comprovassem a actuação do Dr. Raimundo através do dito Luís.
«Já em Setembro de 94, o Dr. Guerreiro telefonou ao depoente a dizer que o Ângelo de Trancoso tinha conseguido obter uma gravação duns encontros com o Luís e que logo que obtivesse a respectiva gravação a faria chegar ao depoente. Entretanto, como ao chegar de férias encontrou os cordéis da roupa cortados e queimados, uma antena da aparelhagem cortada e as persianas de uma janela danificadas, tudo sito nas traseiras e parte lateral da residência do depoente e porque foi conhecedor na plentitude de todos os factos supra mencionados, associou a uma eventual ligação com os factos que vem descrevendo, pelo que deu conhecimento a esta Polícia Judiciária, receando que pudesse ser o prenúncio do cumprimento do “trabalho” mandado executar pelo Dr. Raimundo através do Luís. (...) Que o depoente nunca teve quaisquer relações ainda que institucionais com o Dr. Raimundo e pensa que tudo isto poderá ser uma atitude de vingança face ao resultado do julgamento a que ele foi submetido.»
Jacinto Dias entra em cena, a seguir, em 12 de Outubro, garantindo que fora Álvaro Guerreiro a dar-lhe conhecimento «de que o Ângelo de Trancoso havia sido contratado pelo motorista do Dr. Raimundo, de nome Luís, para que o dito Ângelo arranjasse forma de o depoente, o Dr. Álvaro Guerreiro, o corregedor Dr. Granja da Fonseca e outras pessoas serem devidamente tratadas, querendo com esta afirmação dizer que deveriam ser vítimas de uma qualquer agressão».
Os dois homens voltam a encontrar-se, já na presença de Ângelo, «pessoa que o depoente apenas conhecia de vista», que o faz ouvir algumas das gravações que fizera. «O depoente [Jacinto Dias] após ouvir a gravação, levou bastante a sério aquilo que a seu respeito estava planeado, não só porque conhece bem o Luís, motorista do Dr. Raimundo e este último.» Como seria de esperar, Jacinto Dias diz de João Raimundo que «tinha a percepção e ainda tem de que é pessoa para levar por diante o que havia planeado» e afirma que aquele lhe dissera «pessoalmente que qualquer dia mandaria dar uma sova no Dr. Granja da Fonseca».
As explicações de Jacinto Dias remetem para «o facto do depoente e alguns dos visados terem retirado o seu apoio político à esposa do Dr. Raimundo».
E acrescenta, ainda, que, «após ter dado uma entrevista numa rádio local, recebeu um telefonema da Dra. Marília, ex-governadora civil e esposa do Dr. Raimundo, no seu serviço, pela linha directa, dizendo “o snr. meteu-se com a minha família, ainda vai ter muitas surpresas” desligando de imediato, sem dar tempo ao depoente de dizer o que quer que fosse». Entre esse telefonema (que não tem prova possível) e «o conhecimento dos factos» terá passado mês e meio.
Jacinto Dias revela, ainda, que combinara com Álvaro Guerreiro e com Ângelo que «faria correr nos meios próprios da cidade e a nível partidário que tinha sido agredido não sabendo por quem». Porque, disse, sabia que Ângelo «não actuaria», conviria que «os interessados pensassem o contrário» e para que «não fossem, eventualmente, contratar outra pessoa».
Jacinto Dias fornece mais algumas indicações importantes: que não fora «molestado» nem recebera «qualquer tipo de ameaças», que estava «convicto que é o Dr. Raimundo que está por detrás de toda esta trama, como vingança, pelo facto de lhe ter retirado o seu apoio político» e que Octávio Milagre Mendes, de A-dos-Cavalos, lhe confirmara que «tinha sido contactado pelo Luís para que arranjasse alguém que pudesse partir um braço a um “artista” da Guarda mas não mencionou nomes».
Álvaro Guerreiro, ouvido a 17 do mesmo mês de Outubro, não diverge. Começa por introduzir um elemento dramático: a narrativa de como o seu carro fora atingido com o que declara ter sido tinta branca durante a noite (que, no entanto, pôde remover sem que ficassem danos), e relaciona o caso com João Raimundo. «Na altura, o facto foi comentado na Guarda, havendo desde logo pessoas que associaram a situação ao facto do depoente ser um dos advogados de acusação no julgamento do presidente do Instituto Politécnico da Guarda...», afirma, segundo depoimento à PJ.
A seguir, faz-se referência à existência de «telefonemas anónimos, alguns em que eram proferidas, a despropósito, palavras obscenas, outras com ameaças, nomeadamente à sua integridade física e de coação».
Nada disto será provado no julgamento.
Álvaro Guerreiro faz recuar a primeira intervenção de Brígida a Fevereiro de 1993 (com um cauteloso «talvez»).
E continua, afirmando que, nessa altura, já o motorista andaria a oferecer dois mil contos a quem desse «uma sova» a Bernardo Duarte, Rui Isidro (jornalista de uma rádio local), Granja da Fonseca e ele próprio. Pelo meio, ficam duas sugestões: o motorista a perguntar se o óleo queimado «dava cabo da pintura dos carros» e Bernardo Duarte «com o capot do seu carro todo furado por um objecto que pensava ser do tipo de uma picareta».
Também disto nada se provou... nem causou estranheza que uma ameaça de tal calibre fosse tão conhecida sem que nada fosse feito para a travar.
Em 18 de Outubro, é ouvido Ângelo do Nascimento, que remete o começo da operação para 12 de Julho, quando diz ter sido contactado «pelo taxista Octávio de A-do-Cavalo».
E prossegue o auto de inquirição: «O referido Octávio disse ao depoente que dias antes tinha sido contactado por um tal Luís, que seria de Marialva, e que trabalhava na cidade da Guarda como motorista do presidente da comissão instaladora do IPG da Guarda que pretendia arranjar alguém que fosse capaz de “partir um braço” a uns “artistas da Guarda”»
Negando-se, primeiro, Ângelo «pensou melhor e achou por bem fornecer o seu número de telefone ao Octávio para que este o transmitisse ao Luís, isto porque o depoente ficou com curiosidade e quis saber mesmo a que “artistas” se referia o tal Luís».
A curiosidade de Ângelo de Trancoso é esclarecida «cerca de oito dias mais tarde», quando tem lugar o primeiro encontro. Se algumas coisas condizem com o teor das gravações, feitas por um gravador pequeno cuja qualidade chegou a ser testada em tribunal, outras nunca lá chegarão. Por exemplo, Ângelo diz que Brígida se declarara «já possuidor de uma verba de mil e quinhentos contos para fazer face às despesas e se necessário fosse arranjaria mais dinheiro, sem qualquer problema.» E que o objecto da sua ira era Jacinto Dias, ao que Ângelo confessa que disse que sim, «tendo em vista explorar a situação».
O auto volta, em seguida, atrás no tempo para explicar como Ângelo se precavera com o gravador e tornara possível a obtenção do que seria um alegado meio de prova... ainda em Julho, ou seja, três meses antes:
«Ainda antes do encontro do depoente com o Luís, nesta cidade, o depoente foi de imediato dar conhecimento da situação ao Dr. Álvaro Guerreiro, advogado com escritório nesta cidade, pessoa da sua máxima confiança, e com quem mantém relações há bastante tempo, quer de amizade quer profissionalmente. Aliás, o depoente pretendeu confirmar ao Dr. Álvaro Guerreiro uma situação que já anteriormente tinha ouvido comentar e que nessa altura não sabia se ela corresponderia, ou não, à verdade. Para melhor se assegurar que nada lhe pasaria despercebido, o depoente muniu-se de antemão de um pequeno gravador, aparelho com o qual efectuou o registo desta e doutras conversas com o Luís e das quais sempre deu conhecimento ao Dr. Álvaro Guerreiro.»
E a ameaça contra Granja da Fonseca? Ela também surge de forma diferente no depoimento de Ângelo.
«Se não está em erro», prossegue o auto, Ângelo «voltou a encontrar-se no dia seguinte com o citado Luís junto ao Estádio Municipal da Guarda».
Nessa altura, o que já consta das gravações, Brígida queixa-se da falta de precisão das indicações sobre a casa de Jacinto Dias. Mas, no depoimento, não vem à baila a descrição colorida feita por Luís da mulher que lhe dera as informações.
Mesmo assim, Jacinto Dias, segundo afirma Ângelo — iludindo Brígida — «já as mamou e mamou bem, vai levar mais e não há queixas para ninguém». Brígida, assegura Ângelo, ficou satisfeito com a informação. E continua o auto, agora com nova entrada em cena do juiz Granja da Fonseca... em afirmações que contrariam as gravações!
Por exemplo: que Brígida declarara ser desejável que «o Dr. Granja da Fonseca, corregedor da Comarca da Guarda, tivesse um “tratamento” do mesmo tipo mas teria que ser “monumental”. Não seria para o matar, rindo-se quando produziu tal expressão, mas teria que ser algo que desse nas vistas pelo que tinha que ser tudo muito bem pensado e planeado, devendo ocorrer no espaço de tempo que medeia entre o mês de Outubro e o Natal, altura em que se previa resultados do julgamento do recurso que o “chefe” interpôs para o STJ. Esta explicação levou logo o depoente a associar que o “chefe” seria o Dr. João Raimundo, pois este tinha efectivamente interposto recurso para o STJ em função duma sentença condenatória de que tinha sido alvo num processo relacionado com o IPG, cujo juiz presidente foi o Dr. Granja da Fonseca.»
Mas não é isto, no entanto, o que consta das gravações! Nem, tão pouco, o que Ângelo conta a seguir: que Luís dava «prioridade» no tratamento a João Gonçalves, do Instituto da Juventude, e a Soares Gomes, do Centro de Emprego e Formação Profissional.
Outra divergência entre o depoimento e o teor das gravações, é o que se refere ao dinheiro, como mais tarde se confirmará: «Esclarece ainda que o Luís prometeu ao depoente entregar-lhe uma quantia que rondaria os mil contos, sendo certo que o depoente nunca os viu nem recebeu qualquer tostão.»
Seis dias depois, a 24, Ângelo apresenta outra versão: «Na verdade, o depoente recebeu a importância de um milhão de escudos, por duas vezes, para executar o trabalho. Só não o disse logo no início com receio de poder vir ser incriminado e ainda não se ter aconselhado com o seu advogado. O depoente tem esse dinheiro em seu poder e colocá-lo-á à disposição das autoridades, logo que tal lhe seja solicitado, não tendo sido nunca sua intenção ficar com o mesmo. Esclarece que logo no primeiro contacto recebeu das mãos do Luís em numerário a quantia de quinhentos contos e dois dias depois, segundo crê, podendo apenas referir que foi no domingo seguinte, uma importância igual. Calcula que o primeiro dinheiro foi recebido em 19 ou 20 de Julho do ano em curso. Mais refere que na opinião do depoente, o Luís terá ficado para si com uma importância bem superior à que entregou ao depoente.»
A questão do dinheiro não deixa de ser importante para o deslindar da meada. Havia ou não? Quem o tinha dado a Brígida?
Nas gravações, ele e Ângelo quase não se lhe referem. O próprio acabou por explicar que fora o pai que lhe dera mil contos, para o ajudar a fazer obras na casa. Ângelo conservou o dinheiro em seu poder durante mais algum tempo e, até ao julgamento, quando os juizes da Covilhã decidem que a soma é apreendida, questão que, no entanto, parece pouco importante. Tão pouco que, sendo objecto de uma brevíssima pesquisa por outro agente, depressa desaparecem dos documentos do processo quaisquer referências ao dinheiro.
No auto a que fazíamos referência, encontram-se outras revelações, feitas por Ângelo, que trazem alguma luz ao modo como os acontecimentos se encadearam.
Ângelo afirma que, «sobre o dinheiro, deu conhecimento ao Dr. Álvaro Guerreiro que, como seu advogado, lhe deu de conselho que simulasse as agressões sem as praticar mas que deveria acautelar não recebendo nunca qualquer importância, fosse a que título fosse». Ou seja: como o esclarece o texto das gravações, não houve agressão.
E revela: «Para além do mais, foi provocado um encontro entre o depoente, o Dr. Álvaro Guerreiro e o Dr. Jacinto Dias, visando dar a conhecer ao Dr. Jacinto Dias a gravidade da situação e ao mesmo tempo o depoente combinar com ele, Dr. Jacinto, a estratégia a adoptar no sentido de convencer o Luís e o “chefe” de que a agressão tinha efectivamente ocorrido.»
Ângelo também reconhece que, no seguimento da estratégia adoptada pelo grupo, a insistência era sua... embora sem êxito: «Mais se recorda que em outros contactos, o depoente insistia para que o “trabalho” relativamente ao Dr. Granja da Fonseca fosse efectuado mas o Luís dizia não ter “luz verde do chefe” para que assim fosse, que ele estava como já anteriormente referiu, em férias no Algarve e que a ideia dele se mantinha ou seja, a acontecer só após o conhecimento do resultado do recurso. Mesmo assim, o depoente, prosseguindo na sua estratégia de convencer o Luís do seu total empenhamento nas acções a realizar, disponibilizou-se a ir ao Algarve, se tal fosse necessário, para com o “chefe” e esposa acertarem os pormenores tanto mais que o depoente quis aproveitar o facto de Luís ter referido que a Dra. Marília Raimundo conhecia o depoente. O Luís, no entanto, não manifestou disponibilidade para que tal encontro viesse a ocorrer.»
No mesmo depoimento, de 24 de Outubro, Ângelo dá uma explicação muito especial para as suas insistências: «O facto de, em determinado momento da gravação, ser o depoente a insistir no nome do Dr. Granja da Fonseca pretendeu apenas saber o momento em que era pretendida a execução da ameaça, tendo em vista proteger a figura em causa. Mais refere que quando o Luís se referia que o caso do juiz tinha de ser muito bem planeado, tinha que ser monumental, o depoente pretendeu saber se se tratava de o matar, respondendo aquele que não mas ria-se a bom rir.» A PJ toma como racional e legítima esta explicação.
É ainda Ângelo, nesse depoimento de 24 de Outubro, que fornece mais elementos. Sem citar as conversas gravadas mas garantindo, como único interlocutor de Brígida e sem testemunhas, que ele dissera certas coisas que podiam, nessa altura, consolidar a tese da «lista negra» e tapar quaisquer lacunas que as gravações pudessem ter. Os agentes não parecem ter sido assaltados por dúvidas.
Ouçamos o antigo comando do MDLP: «No entanto, deseja esclarecer que alguns contactos foram feitos fora do carro e nessa altura não foi possível fazer qualquer gravação, porque o depoente não quis correr o risco do Luís se aperceber da situação. Foi numa das conversas fora do carro que o Luís disse taxativamente que o seu “chefe” pretendia dar uma “sova monumental” no juiz presidente do Tribunal da Guarda, Dr. Granja da Fonseca, no Dr. Soares Gomes e outros que agora não recorda mas que se encontram referidos na gravação que entregou a esta Polícia. O certo é que, talvez já pelo facto de saber que o depoente era amigo do Dr. Álvaro Guerreiro, já não se referiu a ele. Nunca o Luís referiu o nome do mandante, tratando-o sempre por “chefe” e só mais tarde e por insistência do depoente, tal como consta da gravação, é que confirmou ser o Dr. João Raimundo o mandante.» Não há testemunha, gravador ou documento que comprovem a integridade da denúncia.
Nas suas declarações, Ângelo garante, ainda, que o caso já vinha de 1993 e que o primeiro contactado fora mesmo o seu irmão Mário «e no momento em que se encontrava presente o Dr. Álvaro Guerreiro». Mário, «que presentemente se encontra fora do País em parte incerta», teria dito que «o Luís, motorista do presidente do Instituto Politécnico da Guarda, o havia contactado, visando arranjar alguém que fosse capaz de dar uma “sova monumental” no juiz presidente da Comarca da Guarda e no próprio Dr. Álvaro Guerreiro», já que o segundo era o advogado de acusação no «caso Bernardo Duarte».
A avaliar pela forma como Ângelo se expressa, nessa altura ninguém — nem o irmão, nem ele, nem Álvaro Guerreiro... — terá levado a sério a eventual ameaça de Brígida: «O depoente ficou um pouco surpreso e zangado e disposto a que essa situação não viesse a ocorrer, quer relativamente ao seu amigo Dr. Álvaro Guerreiro, quer relativamente ao próprio juiz. No entanto, durante um tempo não se ouviu falar mais do assunto.»
Esta displiscência relativamente ao tempo que ia passando não condiz, no entanto, com a alegada gravidade da ameaça, nem por parte de Ângelo nem por parte de Álvaro Guerreiro.
Álvaro Guerreiro torna a ser ouvido pela PJ da Guarda em 3 de Novembro, já depois de Brígida estar preso.
As suas palavras, que parecem servir para consolidar apenas o que Ângelo já tinha dito (como se ambos tivessem noção de que algumas contradições poderiam deitar tudo a perder...), contêm algumas revelações interessantes.
Entre elas, está a consideração tácita de que a gravidade da ameaça que pesaria sobre o grupo, ou parte dele, não era, afinal, suficiente para suscitar preocupações de monta entre Julho e Outubro. Ou seja, num período de três meses em que tudo podia acontecer.
Álvaro Guerreiro diz, nas suas declarações, que «o Ângelo procurou logo, no dia 12 de Julho do ano em curso, contactar o depoente, telefonicamente, mas, como não o conseguiu, decidiu, dada a urgência e o risco de perder o contacto com o Luís de aceitar a marcação de um encontro este em Vila Nova de Foz Côa».
E explica o porquê das gravações: «Porque anteviu a seriedade e gravidade dos factos, por sua livre iniciativa [Ângelo] decidiu munir-se de um gravador para assim registar e, mais tarde, se necessário, poder reproduzir com toda a exactidão todo o teor da conversação com o Luís.» No encontro que terão tido — e cujas circunstâncias não são indicadas com clareza —, «o Ângelo tirou da algibeira um microgravador que colocou em cima da secretária do depoente e que accionou em reprodução de uma cassete contendo a dita conversação, numa primeira, em Foz do Côa e em dia que o depoente não pode precisar mas que se situou entre o dito dia 12 e 19 de Julho do ano em curso».
E, sobre a gravação, afirma Guerreiro:
«Do que recorda ter ouvido nesta gravação, pode dizer que pelo som da cassete lhe pareceu que a mesma foi gravada no interior de uma viatura (...), tendo ele depoente, reconhecido a voz do Ângelo em diálogo com outro indivíduo que o Ângelo referiu ser o Luís, facto este que veio a confirmar pelo teor das próprias palavras do Luís nesta e em posteriores gravações. A conversa inicialmente era banal, referindo o calor que fazia e as vantagens do ar condicionado dos automóveis e, a pouco e pouco, o dito Luís foi “entrando” no assunto, sempre com cautela, revelando reservas, um certo secretismo e dando a perceber que dada a delicadeza do mesmo, por ser “pouco claro” obrigava a segredo. O Ângelo dizia que ele só falava se quisesse mas que se dissesse do que se tratava, porque caso não lhe interessasse lho diria, imediatamente, e tudo ficava terminado.»
Mais à frente, Álvaro Guereiro fornece uma explicação para a entrada de Jacinto Dias na trama:
«O Ângelo disse ao depoente que lhe pedia para falar com o Dr. Jacinto Dias para lhe contar o que se passava e lhe sugerir que, no dia seguinte, aparentasse, em simulação, ter sido agredido fisicamente porque, assim, se conseguiriam dois objectivos: por um lado, evitar que o Dr. Jacinto gosse agredido na realidade por outrém e, por outro lado, o próprio Luís e quem estava por trás dele ficassem convencidos que a agressão tinha sido concretizada conforme a “encomendaram”. O depoente, nesse mesmo dia, tentou encontrar o Dr. Jacinto Dias, o que não conseguiu.»
E, sobre o encontro, mostra como esteve, também, na origem da fingida agressão a Jacinto Dias:
«No dia seguinte, 20/7/94, o depoente telefonou para a casa do Dr. Jacinto Dias cerca das 8.15 da manhã e combinou com ele um encontro, entre as 10h30m e as 11 horas do mesmo dia. Nesse encontro, transmitiu-lhe o pedido do Ângelo e, simultaneamente, disse-lhe também que era desejo do Ângelo que ele próprio ouvisse a gravação para se inteirar da gravidade do assunto. O Dr. Jacinto acedeu e, cerca das 19 horas do mesmo dia, conjuntamente com o depoente e o Ângelo, ouviu a gravação, tendo de imediato e espontaneamente reconhecido a voz do Luís Brígida.
«O Dr. Jacinto e o Ângelo combinaram então que aquele, no dia seguinte, faria constar na Guarda quer em conversas diversas, quer pelo seu aspecto físico, que tinha sido agredido, violentamente, por dois indivíduos nas duas noites anteriores. Que na primeira, ou seja, na terça-﷓feira o tinham tentado agredir mas que ele empunhou uma pistola, o que afugentou os agressores e que na segunda, junto de sua casa em Valcovo, não tinha tido hipótese de se defender e que tinha sido agredido por todo o corpo menos na cara, inclusivamente com um chicote tipo cavalo marinho.»
Esta artimanha terá, supõe-se, convencido Luís Brígida. Será, no entanto, legítimo perguntar se, satisfazendo um rival amoroso, seria suficiente para convencer um adversário político...
O resto do depoimento de Álvaro Guerreiro é omisso quanto a esse aspecto mas revelador quanto à preocupação que tinham quanto à alegada vendetta de João Raimundo: «Passaram-se vários dias, não pode precisar quantos, em que o depoente não viu nem o Ângelo nem o Dr. Jacinto.» Essa ausência não o preocupou. Mas suponhamos que Ângelo ou Jacinto Dias tivessem sido vítimas de qualquer agressão? Não seria natural que Álvaro Guerreiro se mostrasse preocupado? Afinal, não estava ele, também, ameaçado?
«Crê ter sido no princípio de Agosto ou finais de Julho que o Ângelo o voltou a contactar», continua Álvaro Guerreiro, «dando-lhe a conhecer mais três gravações feitas na mesma cassete e depois da já referida.»
Em novas declarações, a 10 de Novembro — cinco dias antes da detenção de João Raimundo —, Álvaro Guerreiro continua a desatar o fio do tempo e a acumular indícios com os quais a PJ consolida a tese da «lista negra», sem dúvidas nenhumas:
«Em princípios de Agosto de 1994, em dia que não sabe determinar, o depoente deslocou-se ao Tribunal da Guarda a fim de participar numa diligência relacionada com um assunto profissional e, por mero acaso, encontrou-se aí com o Dr. Granja da Fonseca, tendo, então, aproveitado o ensejo para lhe dizer que a anterior ameaça de Marialva voltava a surgir, agora com maior credibilidade e com provas — gravações — que ele depoente tinha ouvido no seu escritório mas que não lhe podia reproduzir por considerar que as mesmas estavam sob sigilo profissional.
«No entanto, não deixou de alertar o Dr. Granja da Fonseca para tomar cuidado. Pelo Dr. Granja da Fonseca foi dito que estava tranquilo e que a decisão tomada não era só dele mas de um tribunal colectivo que a havia ditado em consciência e com isenção, mas que não deixaria de considerar, como atentatória dessa isenção e da imunidade dos juízes qualquer ameaça que viesse minimamente indiciada, pelo que solicitava ao depoente que tentasse fazer com que o Ângelo do Nascimento colocasse à disposição dos organismos de investigação todos os elementos de prova que conseguisse reunir.
«Porque entretanto também o depoente se ausentou de férias da cidade da Guarda deixou de ter contacto com o Ângelo do Nascimento e só em meados de Setembro voltou a receber este no seu escritório, o qual, nessa altura, lhe deu a ouvir o resto da gravação que já havia sido feita em finais de Julho ou princípios de Agosto.»
Nas duas declarações, Álvaro Guerreiro volta a afirmar que Luís indicara Granja da Fonseca como pessoa a agredir e que identificara João Raimundo como seu mandante mas introduz um elemento novo:
«Em toda a gravação, quanto a ele depoente, pelo Ângelo é perguntado, segundo recorda: “Então e o Guerreiro?”, ao que o Luís respondeu: “O Guerreiro não. É o João Gonçalves”. O depoente está convicto que o seu nome não é referido e é até rejeitado.»
E, logo de seguida, garante não ter «qualquer problema de ordem pessoal contra o Luís», que «quanto ao Dr. Raimundo e à esposa nunca teve qualquer problema de ordem pessoal com os mesmos e muito menos de ordem política», tendo sido — até «já depois de ter tido conhecimento que era visado, no contacto havido em Marialva para ser “batido” a troco de dinheiro» — convidado, por Marília Raimundo, para encabeçar a candidatura do PSD à Câmara da Guarda.
Álvaro Guerreiro ou não queria acreditar na «lista negra» ou exclui-se dela, embora o seu nome ainda venha a aparecer, sempre indicado por fontes policiais. Mas não chegará a fazer como Jacinto Dias, que recusa proceder criminalmente contra João Raimundo.
Apesar de, aparentemente, se mostrar reticente a entrar nesse grupo, o advogado de Bernardo Duarte ainda atira achas para a fogueira: há chamadas telefónicas anómimas para a sua casa (que, se são atendidas pela sua filha de seis anos de idade, contêm «obscenidades») que relaciona com o «derramamento de tinta no carro» e com «o seu próprio espírito de intranquilidade».
Tudo isto foi suficiente para a PJ deter João Raimundo, a 15 de Novembro. Mas, preso este, havia um problema: Marília Raimundo.
E, para chegarem a Marília, o processo vai ser semelhante: um cadastrado, um encontro furtivo (que, dessa vez, nem existiu), uma nova ameaça sob encomenda e pagamento em dinheiro. A engrenagem começa a ser posta em marcha, enquanto João Raimundo é declarado em prisão preventiva e a acusação é formulada, com o Ministério Público a aceitar por inteiro, as sugestões da PJ.

CAPÍTULO 6

COMO O PSD ATACOU MARÍLIA
Marília Raimundo foi o segundo alvo da conspiração que levou João Raimundo à prisão em 15 de Novembro de 1994.
O que aconteceu, depois da prisão do marido, mostra como quiseram, claramente, intimidá-la, afastá-la e, talvez mesmo, prendê-la, enrededando-a numa situação idêntica àquela em que o marido fora envolvido. A única dúvida que permanece é se a ex-governadora civil da Guarda estava na mira dos conspiradores desde o início ou se foi acrescentada, quando eles viram que a prisão de João Raimundo não era suficiente para a silenciar.
Aliás, era óbvio que, quer como membro do que chegou a ser considerado um «clã», quer como cidadã de referência na região, Marília, ex-governadora civil, ex-﷓líder social-democrata, deputada na Assembleia da República quer como personalidade respeitada dentro da maioria governamental, constituiria um perigo se, ficando livre, saísse ilesa do cerco construído pelas informações e acusações coladas a João Raimundo.
Por outro lado, o facto de a primeira peça deste puzzle ter sido lançada para a mesa de jogo em 23 de Novembro, só uma semana depois da prisão de João, e o modo tão semelhante (e tão apressado...) como o ataque foi arquitectado fazem, no entanto, pensar que Marília não era uma prioridade.
Talvez os adversários do casal pensassem que a prisão do presidente do Instituto Politécnico da Guarda fosse suficiente e que a sua mulher ficaria assustada. Vigiada e acossada, com a família praticamente destruída, seria natural que qualquer pessoa se fosse abaixo. Mas não foi isso que aconteceu. Ou talvez achassem que se fora tão fácil incriminar João, já agora talvez se pudesse fazer o mesmo a Marília. Mas conheciam mal a força de espírito da mulher que, nascida numa das regiões mais interiores da Beira, se impusera dentro e fora da sua terra como dirigente política.
Em qualquer dos casos, mesmo sem gravações e em corrida contra o tempo, não havia como tentar. E se um primeiro cadastrado (Ângelo) servira para levar a polícia a prender João, talvez um segundo servisse para prender Marília... Para quem a pôs também na hit list seria, verdadeiramente, tentar matar dois coelhos de uma cajadada.
É assim que entra em cena a personagem José Manuel Amaral, mais conhecido pelo petit nom de «Roupinhas».
Tudo começa — voltemos, mais uma vez, à indispensável documentação certificada pela PJ — em 23 de Novembro de 1994, uma semana depois da prisão de João Raimundo.
Jacinto Dias, o primeiro nome sempre citado por Brígida a Ângelo de Trancoso, o homem que invariavelmente surge com todas as explicações para as várias situações, é, nesse dia, ouvido mais uma vez pela PJ da Guarda.
Jacinto Dias reafirma, então, ter sido ameaçado por João Raimundo e explica que isso se devia a ter reservas em assinar a tal carta dirigida ao Conselho Superior da Magistratura contra Granja da Fonseca. Dando força à tese da vendetta, agora consideravelmente alargada, toma a seu cuidado a apresentação da nova personagem que ia entrar em cena. Ouçamo-lo:
«Deseja ainda transmitir para os autos que no passado dia 13 do corrente [13 de Novembro], pessoa que neste momento o depoente não deseja indicar para os autos lhe deu conhecimento de que estavam em curso preparativos visando a sua eliminação física. Segundo lhe foi transmitido, estariam envolvidos nos mesmos o presidente da Câmara, Abílio Curto, a esposa do Dr. João Raimundo, Dra. Marília, e um tal “Roupinhas”, que o depoente sabe apenas chamar-se Amaral e ser da Guarda, mais concretamente dos Troucheiros.
«Existiriam, ou continuariam a existir, contactos entre essas pessoas — reuniões — para melhor gizarem um plano de concretização desses intentos. Não sabe o depoente se é ou não apenas e só o único visado, sendo certo que o nome de João Gonçalves, que também está envolvido nos presentes autos, foi igualmente pronunciado.
«O depoente sobre estes novos factos fá-los-á chegar ao conhecimento das autoridades, sempre que tenha elementos novos a transmitir.»
Depois (para que fique tudo — passe a contradição... — mais claro?), Jacinto Dias avança mais uns metros no terreno, asseverando «que no passado dia 16, também do corrente mês, o depoente foi abordado pelo dito “Roupinhas” no Restaurante dos Galegos na Guarda, quando se encontrava também presente o Dr. Soares Gomes, tendo o primeiro confirmado ao depoente o que anteriormente lhe tinha sido dado conhecimento no passado dia 13 do corrente, que inclusivamente tinha estado efectivamente na residência de Abílio Curto, em reunião que ocorreu pelas 3 horas da madrugada, mais concretamente na garagem da dita residência, com a presença da Marília Raimundo e que ele, “Roupinhas”, tinha sido contactado no sentido de arranjar alguém que fosse capaz de “bater” no depoente, se bem que agora já lhe consta que o que se pretende é a sua “eliminação a qualquer preço”.»
Não se pode ser mais claro, em matéria de acusações, mas é sempre possível dramatizar:
«A partir desse momento, o depoente tem tomado mais algumas cautelas, isto porque para sua casa têm sido efectuados alguns telefonemas esquisitos, ora procurando pelo depoente, ora tentando saber elementos sobre dados pessoais, desconhecendo o depoente a motivação de tais pessoas, no entanto e face ao desenvolvimento que os factos narrados vêm tomando, pensa que poderá existir relação entre eles.»

A figura da ameaça protagonizada pelo «Roupinhas» é continuada a construir com um novo depoimento, como uma verdadeira work in progress. Agora, é a vez de António Soares Gomes, a 13 de Dezembro, com um depoimento inevitavelmente muito coincidente com o de Jacinto Dias. Ouçamo-lo, em versão integral:
«Que efectivamente no decorrer do mês de Novembro, em dia que já não pode precisar, o depoente por motivo de serviço deslocou-se ao Centro Regional de Segurança Social para tratar de assuntos profissionais com o Dr. Jacinto Dias. Aí, encontrou também o João Gonçalves, não sabendo o depoente que motivos ali levaram o dito João, acreditando também que por razões profissionais.
«Entretanto, aproximou-se a hora do almoço e o depoente perguntou em que local iriam almoçar. O João Gonçalves escusou-se, dizendo já ter um compromisso e nessa altura o Dr. Jacinto Dias informou o depoente que tinha um almoço marcado com uma pessoa e não sabia se era ou não aconselhável a presença do depoente no mesmo mas, mesmo assim, iria levantar a questão. Isto porque segundo o Dr. Jacinto, nesse almoço lhe iriam contar mais algumas coisas relacionadas com o caso Raimundo.
«Quando saíram do gabinete do Dr. Jacinto Dias, no corredor encontrava-se um guarda prisional que o depoente apenas conhece pelo nome de Pereira. Recorda-se do Dr. Jacinto ter perguntado ao Pereira se não havia inconveniente em o depoente os acompanhar ao almoço, tendo a resposta sido positiva. Deslocaram-se assim para o restaurante A Colmeia, sito na localidade de Galegos, Guarda.
«Aí, encontraram um indivíduo que o depoente conhece apenas de vista e que dará pela alcunha de “Roupinhas”. Sentaram-se numa mesa e então o “Roupinhas” começou por dizer que o que ia informar era confidencial, pedia a maior descrição e só o fazia pelo facto de ter consideração pelo Pereira que era muito amigo do Dr. Jacinto Dias.
«No desenvolvimento da conversa, viria então a informar que pouco tempo antes tinha sido contactado pelo snr. Abílio Curto, presidente da Câmara da Guarda, que, no seu gabinete na Câmara, propôs ao “Roupinhas” a comparência numa reunião com uma determinada pessoa, cujo nome na altura não divulgou. Ficou desde logo marcada uma reunião que ocorreu na garagem da residência de Abílio Curto, por cerca das 3 horas da madrugada, isto pouco tempo depois deste primeiro contacto.
«O “Roupinhas” compareceu a tal encontro e, para seu espanto, encontraria na dita garagem, para além do Abílio Curto, a Dra. Marília Raimundo. Resultou que a Marília pretendia que o dito “Roupinhas” contactasse terceiros para dar execução a um plano que deveria ter como resultado a eliminação, se não está em erro, do Dr. Jacinto Dias e pelo menos do João Gonçalves. Esta situação terá ocorrido muito pouco tempo antes da prisão do Dr. João Raimundo.»
Ressalvando, quanto ao então presidente da Câmara (que, curiosamente, é poupado neste processo), que «o que é certo é que não sabe se directa ou indirectamente ele tenha também quaisquer interesses», Soares Gomes diz ainda que «terá também ficado agendada nova reunião, que o depoente não sabe se ela veio ou não a realizar-se, porque entretanto o Raimundo foi detido e por outro lado o depoente não recebeu mais qualquer informação».
As citações, longas, justificam-se como adiante se verá.
Elas são feitas com um tal grau de segurança que parece ser impossível pôr em dúvida a credibilidade desta contraditória testemunha que é José Manuel Amaral. Mas o certo é que, a ser tudo verdade, ninguém de entre os potenciais visados se preocupou com isso entre 20 de Dezembro de 2 de Fevereiro.
É nesse dia que o «Roupinhas» é ouvido pela PJ que, no respectivo auto de inquirição, o descreve como «industrial, ligado à camionagem e venda de viaturas usadas», fazendo, no entanto, notar que ele já estivera detido e que se encontrava naquele momento, em «liberdade definitiva»(!), com 32 anos.
O primeiro depoimento de «Roupinhas» é muito longo e muito elaborado. Mas, à luz do desfecho deste caso, tem que ser lido quase na íntegra, acompanhando os homens da PJ que o ouviram e convidando o leitor a segui-los na sua aparente credulidade, como se fosse possível acreditar no homem que tinham diante de si.
O «Roupinhas» diz que conhece, «há alguns anos», Jacinto Dias e Soares Gomes e conta «que, realmente, em Novembro do ano findo, em data que já não sabe precisar, (...) foi contactado, pessoalmente, pela Dra. Marília Raimundo, na sua quinta em Troucheiros — Pínzio — Pinhel. Que a dita senhora se deslocou num Toyota Carina de cor azul e não ia acompanhada».
E continua: «Quando a Dra. Marília abordou o depoente, disse-lhe que seu marido, João Raimundo, é que lhe tinha dado a indicação para vir a falar com o depoente. Pretendia que o depoente conseguisse alguém que fosse capaz de dar cumprimento ao primeiro plano abortado por esta Polícia, ou seja, pretendia que fosse dado seguimento aquilo que o Ângelo de Trancoso não levou por diante.»
Depois, pormenoriza: «O que efectivamente a Dra. Marília pretendia era mandar abater o Ângelo de Trancoso por a ter traído, o Dr. Granja da Fonseca, o Dr. Jacinto Dias e o João do Barracão [petit nom de João Gonçalves], estes dois últimos por a terem traido politicamente, os primeiros por serem responsáveis pela prisão do marido que considerava estar inocente. Disse que poria à disposição do depoente 20 ou 30 000 contos se tal fosse necessário. O depoente respondeu que a questão era séria e que precisava de tempo para pensar, pois ainda há bem pouco tempo tinha saído de uma prisão e não queria ver-se envolvido e voltar para o local de onde tinha saído.»
O «Roupinhas» diz que se «aconselhou» com o «seu amigo Pereira, chefe dos guardas prisionais do Estabelecimento Prisional da Guarda, pois não sabia como é que haveria de responder à senhora, pois se o dinheiro lhe dava jeito, por outro não queria ver-se envolvido».
Declarando-se, por fim, indisponível para o efeito, embora por outras palavras, José Amaral achou que devia prevenir «as pessoas das suas relações» (Jacinto Dias e Soares Gomes).
Mas o seu alegado envolvimento com Marília Raimundo não se quedou por esta brevíssima reflexão sobre as vantagens e as desvantagens do acto para o qual se dava como solicitado.
Ouçamo-lo e anotemos os pormenores dramáticos, quase macabros, que rodeiam uma outra peça importante deste puzzle que é a garagem do então presidente da Câmara Municipal da Guarda, Abílio Curto:
«... Na realidade, esteve marcada uma reunião com a Dra. Marília numa garagem de uma residência desta cidade, mas tal reunião não chegou a concretizar-se. Não se recorda de ter falado no nome do presidente da Câmara Abílio Curto e pensa que poderá ter existido da parte do Dr. Jacinto Dias e do Dr. Soares Gomes qualquer confusão, provavelmente resultante da continuação da conversa.
«Recorda-se, também, de ter sido advertido pela Dra. Marília de que se alguma vez falasse deste assunto o mandaria liquidar. Esta situação ocorreu quando algum tempo depois, talvez cerca de 15 a 20 dias após o primeiro contacto, lhe ter dito que não estava interessado no negócio, ocorrendo essa conversa nas imediações da residência da Dra. Marília nesta cidade da Guarda.»
Logo a seguir, encontramos algumas declarações, de carácter muito pessoal, que convém ter presentes, atendendo à distância de três meses que medeiam entre as primeiras referências a «Roupinhas» e a sua inquirição pelos sempre presentes subinspector Manuel Portugal e agente José Casaleiro. Parece um remake da história que liga Ângelo de Trancoso a Luís Brígida.
«O depoente só presta estas declarações, por força de ter sido abordado por esta Polícia sobre a matéria e as não poder negar», afirma Amaral, acrescentando: «Não o fez antes, nem o faria, pois na realidade tem medo que a Dra. Marília possa, eventualmente, levar por diante o seu projecto, agora também contra o depoente. Sabe que é pessoa poderosa e com meios económicos, para facilmente contratar quem quer que seja para dar seguimento ao que atrás vem referindo». Mesmo estando isolada, social e politicamente, sob o fogo intenso da Comunicação Social e sob a vigilância de pessoas que podiam (ou não) ser agentes da polícia?
E Amaral continua: «Nunca esteve na mente do depoente fazer ou contratar quem quer que seja para levar por diante o que lhe foi solicitado pela Dra. Marília. Igualmente desconhece por que razão seu marido, João Raimundo, terá apontado o nome do depoente como sendo pessoa capaz de aceitar o contrato proposto. Reafirma que o que ela pretendia era mandar liquidar o Dr. Granja da Fonseca, o Dr. Jacinto Dias e pelo menos o João do Barracão que o depoente pensa conhecer apenas de vista.
«Não pretende ver-se envolvido nesta situação, tanto mais que está a lutar para refazer a sua vida pelas razões que já anteriormente indicou.»
Em 7 de Fevereiro, a PJ ouve o guarda prisional Armando Pereira. É uma testemunha que afirma ter conhecido o «Roupinhas», «por força das funções que desempenha» há quase oito anos e ser amigo de Jacinto Dias «há muito mais tempo e por outras razões».
Divergindo um pouco, em pormenores do primeiro testemunho de «Roupinhas», Armando Pereira conta que «no decorrer do mês de Novembro do ano findo e em dia que já não pode precisar o depoente foi abordado pelo dito Amaral (...) com vista a tentar dar solução a um problema que o preocupava. É que, segundo lhe contou o José Amaral, este tinha sido contactado pela Dra. Marília Raimundo, a qual pretendia que ele, Amaral, arranjasse alguém que fosse capaz de “dar uma tareia” no João do Barracão e “partir os braços” ao Dr. Jacinto Dias, não se recordando o depoente se o nome do Dr. Granja da Fonseca também foi ou não nomeado. O Amaral não explicou a forma como terá sido contactado pela Dra. Marília, esposa do Dr. João Raimundo, nem em que circunstâncias terá ocorrido tal contacto».
Em 15 de Fevereiro, temos nova intervenção. Desta vez, é o momento de o juiz Granja da Fonseca entrar em cena com um testemunho que dir-se-ia ter como objecto exclusivo o reforço da credibilidade do «Roupinhas».
O juiz conta que, nesse mesmo dia, fora abordado no seu próprio gabinete do Tribunal Judicial da Guarda «por um tal Amaral dos Troucheiros», que conhecia bem «por já o ter julgado e condenado algumas vezes em diversos processos». Parecendo-lhe «estar “apavorado”», pedira-﷓lhe «por tudo» para ser recebido. E foi-o, naturalmente, tendo contado ao juiz que «há cerca de três meses a esta data tinha sido contactado (...) pela Dra. Marília Raimundo (...) num Toyota Carina de cor azul e sozinha».
E o juiz revela, citando Amaral: «Tal senhora referiu ter-se ali deslocado a pedido do marido, João Raimundo, pretendendo que ele, Amaral, através dos conhecimentos que tinha da sua estadia na cadeia e com espanhóis, conseguisse arranjar alguém que matasse o depoente [Granja da Fonseca], o Ângelo de Trancoso e o Dr. Jacinto Dias, disponibilizando para isso uma quantia entre os 20 e os 30 mil contos ou superior pois tinha dinheiro bem para cima dos 300 mil contos.»
Granja da Fonseca garante que Amaral se sentia «atormentado», revelando que fora ameaçado de morte «se desse à língua», e acrescenta que o guarda Pereira fora informado, corroborando o encontro que Jacinto Dias já dissera ter tido lugar num restaurante da Guarda.
Quanto ao facto de já terem passado três meses desde o alegado rendez-vous com Marília Raimundo e só nesse mesmo dia ter-se o «Roupinhas» aberto com o juiz, Granja da Fonseca fornece a seguinte explicação:
«O facto de ter vindo contar tudo isto ao depoente, devia-se à circunstância de, durante a noite finda, ter sido perseguido por um carro de cor preta, cuja matrícula não indicou [com] dois indivíduos que nela se transportavam e que ele diz desconhecer quem seriam. Para além desta situação, refere a ocorrência de outras anteriores, designadamente com dois individuos cujo nome não indicou, de Vila Flor, e que estariam implicados num homicídio ocorrido numa discoteca.»
Granja da Fonseca, decidido, garante que perante a aflição de Amaral (que teria mesmo dito que «sabia que ia ser abatido»), mobilizou logo dois agentes e um comissário para lhe garantirem uma protecção que, estranhamente, não fora antes sentida como necessária. E conclui:
«São estes os factos que traz aos autos, não tendo, por agora, outros elementos. Deseja deixar ficar mais uma vez vincado que leva a sério esta situação, face a tudo quanto já se passou e está por detrás, segundo pensa, das reais intenções do Dr. João Raimundo e agora, senão desde sempre, da Dra. Marília Raimundo.»
Como poderiam os esforçados agentes da PJ, em cuja isenção devem acreditar todas as pessoas de bem, pôr em dúvida a palavra de um juiz? No entanto, sem que se saiba verdadeiramente porquê, a PJ até decide ouvir novamente o «Roupinhas», como que procurando uma confirmação definitiva.
E, em 9 de Março, Amaral insiste, volta a insistir na história que já contara, num depoimento recheado de pormenores que se tornam cada vez mais difíceis de serem confirmados, não sem algumas discrepâncias e com um cheirinho a intriga internacional, que até envolve espanhóis aparentemente catalogados como assassinos profissionais. A saber:
«...Em data que não sabe precisar, podendo afirmar que terá sido mais ou menos a meio do mês de Dezembro de 1994, num dia da semana, seriam talvez cerca de 11 horas da manhã, quando foi abordado pela Dra. Marília Raimundo, na sua quinta em Troucheiros — Pínzio — Pinhel.
«Que a dita senhora ali se deslocou sozinha, fazendo-se transportar num carro de cor azul metalizado, ao que pensa da marca Toyota, modelo Carina, cuja matrícula não recorda. Estacionou o carro, na estrada principal e junto ao local onde o depoente anda a construir uns armazéns. Que a Dra. Marília nunca ali tinha estado e desconhece quem lhe terá indicado a sua quinta nos Troucheiros. Mais se recorda que ela chegou pouco depois do declarante e deste facto não tem testemunhas, porque não se encontrava, no local mais ninguém. Também neste momento não se recorda como é que ela vinha vestida.
«Que a conversa que mantiveram ocorreu junto ao carro dela. Reafirma que a Dra. Marília lhe disse que ali se tinha deslocado a pedido do marido João Raimundo. Que no local atrás indicado a dita Dra. Marília, pretendeu contratar o depoente, no sentido de que arranjasse alguém que matasse o Dr. Granja da Fonseca, o Dr. Jacinto Dias, o Dr., digo, o João do Barracão, do I.J. [Instituto da Juventude] da Guarda e o Ângelo de Trancoso. Estava disposta a pagar 30 000 contos, mas se fosse preciso mais que o depoente pedisse.
«Avisou-o, no entanto e por mais que uma vez que se “desse com a língua nos dentes” o mandaria liquidar. Recorda-se que foi também nessa altura que ela Dra. Marília chegou a exibir fotografias da quinta onde mora o Dr. Jacinto Dias. Mais se recorda que foi a Dra. Marília quem disse ao depoente que tinha conhecimento que o depoente tinha contacto com espanhóis que poderiam fazer o serviço.
«O depoente não deu qualquer resposta, no imediato, pedindo algum tempo para pensar. O que aconteceu é que algum tempo depois a Dra. Marília telefonou ao depoente, marcando uma reunião para saber a resposta ao seu pedido.»
É assim que chegamos à garagem do então presidente da Câmara Municipal da Guarda:
«Quando ela lhe telefonou», continua «Roupinhas», «ao que crê ainda no mês de Dezembro do ano findo, marcou uma reunião que ocorreu por cerca das três da manhã, na garagem da residência do Presidente da Câmara Abílio Curto. Que nesta reunião só esteve presente o depoente e a Dra. Marília, tendo sido ela quem abriu a porta da garagem, não sabendo o depoente onde é que ela arranjou a chave.
«Nesta altura da reunião, a Dra. Marília perguntou ao depoente qual era a sua resposta, tendo o depoente pedido mais uns dias para pensar no assunto. Também não se recorda como é que ela estava vestida, pensando que trajaria um casaco acastanhado em cabedal mas não pode afirmar tal por não estar seguro.»
A seguir, o cenário muda, num contraste talvez excessivo entre uma garagem de madrugada e a porta de uma casa de família à hora do jantar: «Em meados de Janeiro do ano em curso, também não pode precisar o dia, o depoente ligou-lhe, telefonicamente, e combinaram encontrar-se junto à porta da residência da Dra. Marília Raimundo.
«Para esse local, o depoente deslocou-se no seu Honda Prelude de cor creme. Seriam cerca das 20 horas, ela desceu as escadas da residência e junto às mesmas o depoente disse-lhe que não estava interessado no contrato. Apesar de lhe fazer muita falta o dinheiro, não estava interessado, tinha saído há pouco tempo da cadeia e queria reorganizar a sua vida. A Dra. Marília Raimundo aceitou mas voltou a dizer ao depoente que se alguma vez falasse deste assunto a alguém o mandaria liquidar.»
Tinham, a acreditarmos nas palavras do juiz, de Jacinto Dias e do guarda prisional, passado três meses. E o «Roupinhas» não fora vítima de ameaça ou perseguição que se visse.
O certo é que Marília Raimundo acaba por ser declarada arguida, já em 7 de Março, sendo ouvida, como tal, a 10 de Março, em circunstâncias um tanto bizarras, provocadas pela iniciativa da PJ de comunicar directamente com Marília Raimundo. Porque a sua condição de deputada da República obrigava a que essa diligência fosse feita através do Ministério da Justiça para a presidência da Assembleia da República. O equívoco, chamemos-lhe assim, provoca uma verdadeira borrasca política em Lisboa, como mais tarde veremos.
Mas regressemos a 10 de Março quando, perante os polícias, Marília Raimundo nega tudo. Veementemente.
Nega conhecer José Manuel Amaral e tê-lo contactado «para liquidar fosse quem fosse» e esclarece que, sim, tinha um Toyota Carina. Mas que nunca o tinha utilizado «e muito menos nos meses de Novembro e Dezembro do ano passado, na zona da quinta dos Troucheiros — Pínzio — Pinhel, zona, aliás, que desconhece».
A seguir, afirma que o facto de ter tido um acidente de viação oito anos antes e por ter dado uma queda no mês de Novembro de 1994 tinha lesões no pé esquerdo, «lesões essas que lhe não permitem fazer percursos longos em condução automobilística, pelo que os percursos que faz, utilizando e conduzindo um veículo automóvel, são curtos e se limitam, praticamente, a andar dentro da cidade».
Nega, também, ter-se encontrado com o «Roupinhas» na garagem do presidente da Câmara de madrugada. Com quem, acrescenta, mantinha relações institucionais mas sem que existissem «quaisquer laços de amizade ou intimidade». Quanto à garagem, conhecia a casa, «já que quando passa pela via pública a vislumbra, não sabendo porém a porta de entrada da referida casa, já que nunca nela entrou».
A acusação de ter oferecido dinheiro a Amaral é também rejeitada, bem como o facto de alguma vez ter afirmado que considerara uma traição a oposição que Jacinto Dias, Soares Gomes e João Gonçalves lhe haviam feito no PSD local. Quanto a Granja da Fonseca, não alimentava animosidade contra ele apesar de ter ditado a sentença contra João Raimundo. E, recordava, o processo fora objecto de recurso. Quanto a Ângelo de Trancoso, não o conhecia e quanto a Brígida nunca tivera qualquer conversa com ele sobre os alegados «traidores».
A seguir, a defesa pede uma acareação com Amaral, que se encontrava nas instalações da Judiciária, e com Abílio Curto. A Judiciária aceita o pedido.
É um volte-face e o princípio do fim da credibilidade do «Roupinhas»... que será, como dizia recear, «abatido»... mas no sentido figurado do termo e não por Marília Raimundo — pelo Tribunal Judicial da Comarca da Guarda em Outubro de 1997, ou seja, dois anos e sete meses depois da tentativa feita para incriminar Marília.
Porém, nesse dia 10 de Março, no entanto, ainda Amaral garantia que era tudo verdade.
A acareação é narrada pelo agente Casaleiro e o auto regista as seguintes presenças: Marília Raimundo, Amaral, João Marques Mendes Nabais (procurador da República), Amália Rolão Preto (delegada do Procurador da República), Castanheira Neves e Helena Lages (advogados de Marília Raimundo) e Manuel Portugal.
«Roupinhas», o primeiro a explicar-se, reafirma tudo: o encontro na garagem de Abílio Curto «pelas 3 horas da manhã de dia que não pode precisar, mas que e se não está enganado, ou no decurso do mês de Janeiro de 1995 ou ainda no mês de Dezembro de 1994, antes do dia de Natal».
Amaral fornece larga cópia de pormenores: que a porta da garagem é do tipo basculante, que ele entrou por «uma pequena porta, denominada porta de serviço, incrustada no portão basculante», que Marília Raimundo é que acendeu a luz «através de interruptor que não se lembra onde o mesmo está situado, bem como não sabe de onde procedia a luz da dita garagem», onde «poderão caber três veículos automóveis e, se não está em erro, no interior da mesma apenas se encontrava um Volvo que segundo pensa é de modelo recente e, salvo erro, também uma moto das grandes».
E ainda se refere a uma eventual presença canina, pormenor que não é menos importante: «Que não deu pela presença de quaisquer pessoas na dita vivenda bem como pela presença de qualquer animal de raça canina.»
O encontro nos Troucheiros foi, de novo, objecto de insistência por parte de Amaral bem como a garantia de que conhecia Marília Raimundo por uma visita efectuada, quando a então deputada era governadora civil, ao Estabelecimento Prisional da Guarda, onde ele efectuava uma das suas estadias.
Marília Raimundo só aceita esta possibilidade mas num quadro muito preciso: admitiu «que o tenha cumprimentado, como, aliás, cumprimentava todos os reclusos». Quanto ao encontro na garagem, Marília Raimundo declarou-se, naturalmente, «revoltada» e negou, de forma categórica:
«Que era impensável para si sair às 3 horas da mnhã para o encontro na casa de uma pessoa com quem não tem relações de amizade, sendo certo que pela data que o segundo acareado [«Roupinhas»] refere, já o seu marido se encontrava detido e se a vissem passar àquela hora, sozinha no seu veículo automóvel que toda a gente conhece e deslocando-se para o sítio onde o segundo acareado diz que foi o encontro, seria seguida por muita gente dentro da cidade da Guarda, facto esse que seria muito comentado. Que quanto aos 20 ou 30 mil contos que o segundo acareado diz que a 1.ª acareada lhe ofereceu, é impensável que dispusesse dessa quantia à mão.»
Breve, a explicação é muito racional. É possível pensar que Amaral (ou alguém por ele...) não tenha considerado que seria pouco plausível — e algo perigosa — uma sortida desse género por parte de Marília Raimundo, que estava debaixo de todas as atenções. Nem, sequer, possível se, não considerando a questão política, se pensar no quadro social que envolveria uma visita a horas impróprias de uma mulher casada, com o marido detido, a casa de outro homem. A pressa — em encontrar algo para incriminar Marília — terá sido má conselheira?
Abílio Curto, o então presidente da Câmara da Guarda, é ouvido a 14 de Março. Esclarece o tipo de relações que tinha com Marília e João Raimundo, institucionais com a primeira e difíceis (mas sem nunca terem sido cortadas) com o segundo, «dado o facto de terem sido estudantes na mesma altura».
E mais esclarece, pela pena de Casaleiro: «Que pelas razões atrás apontadas nunca o depoente poderia ter emprestado a chave da sua garagem ou muito menos ceder a sua residência para qualquer tipo de encontro entre a Dra. Marília e outra pessoa qualquer que não fosse da sua inteira confiança. Que o depoente não tem relações com o José Manuel Amaral, muito embora admita que o possa conhecer apenas de vista.
«Que na sua garagem nunca teve estacionado o seu Volvo mas sim o Toyota branco de seu filho.
«Que o portão da entrada da sua residência é em duas folhas e na verdade o chão de acesso da entrada principal até à garagem da residência é cimentado. Que tem alguns cães ficando o canil dos mesmos a cerca de três metros da porta da garagem. [Os cães estavam ausentes do depoimento de Amaral, sendo de presumir que dessem sinal da sua presença perante uma entrada assim tão inesperada de um desconhecido...]
«Que a porta da garagem é do tipo basculante, mas não tem qualquer porta de serviço inscrustrada.
«Mais uma vez reafirma achar impossível que alguma reunião tenha ocorrido na garagem da sua residência e muito menos com a presença da Dra. Marília Raimundo, pessoa que nunca pisou os seus terrenos. Relativamente ao canil, esclarece que em Novembro ou Dezembro do ano findo, ele não se encontrava no local onde hoje está situado mas sim ao fundo da rampa de acesso à garagem.»
Não se adiantam pormenores sobre o número e a raça dos cães nem se eles poderiam ter ladrado — ou feito sentir a sua presença de outro modo — a um visitante como o «Roupinhas» mas as dúvidas são tantas que a PJ até fotografa alguns aspectos da garagem e inclui-os no processo.
Será quase desnecessário dizer que as fotografias desmentem «Roupinhas» que, ouvido em 16 de Março, ainda insiste no que antes dissera aos agentes da Judiciária. Mas é uma insistência que vai cair em saco roto, quando, em 3 de Abril, o agente J. Casaleiro sacode «Roupinhas».
Num ponto de situação («Historial da ocorrência», com data de 3 de Abril) em oito páginas, o agente Casaleiro dedica duas páginas a José Manuel Amaral.
Recorda que este acusara Marília Raimundo de o ter contactado para que «eliminasse» Granja da Fonseca, Jacinto Dias, João Manuel Gonçalves e Ângelo de Trancoso. Recorda, também, pormenores da acusação, a audição de Marília Raimundo e a acareação. Mas não o modo como «Roupinhas» é introduzido no processo nem que o fez. E lá ressalva:
«Porém, os pormenores acrescentados, respeitantes aos sinais identificativos do sítio onde ocorreu o alegado segundo encontro (garagem do sr. Abílio Curto, presidente da Câmara) não coincidiram com a realidade que esta Polícia constatou no local.
«Além disso, o sr. Abílio Curto, inquirido de seguida, negou também firmemente a ocorrência desse encontro em sua casa.
«O Amaral afirmou não existirem quaisquer testemunhos dos encontros que, não obstante, em posterior inquirição veio a reafirmar terem ocorrido.»
E conclui, como que insatisfeito: «Assim, e porque não se vislumbra possibilidade de efectuar qualquer outra diligência susceptível de esclarecer a questão, parece-nos dever concluir-se pela não suficiente indiciação da Dra. Marília Raimundo na prática dos factos de que o Amaral deu notícia.»
É de registar que o cadastro de Amaral (tal como o de Ângelo de Trancoso) não parece constituir elemento impeditivo da sua credibilidade...
Assim, em 25 de Abril (na mesma data em que sai a acusação contra João Raimundo), o Tribunal Judicial da Covilhã informa Marília Raimundo de que o Ministério Público se abstivera de acusá-la pelo crime de terrorismo, ordenando o arquivamento do processo.
«Roupinhas» é que não é esquecido e o processo, por difamação, que Marília Raimundo lhe move ajudará a perceber melhor o puzzle.
O processo arrasta-se durante os anos de 1996 e de 1997, com Amaral a ser chamado diversas vezes a tribunal. Mas só acaba por comparecer, e já sob custódia da GNR de Pínzios, em Outubro de 1997, no Tribunal Judicial da Guarda. Ou seja, três anos depois dos factos que garantiu terem acontecido.
A sentença do Tribunal Judicial da Guarda, datada de 1997, é claríssima.
O Tribunal declara como provado que Amaral «quis e soube imputar à assistente [Marília Raimundo] factos que sabia não corresponderem à realidade, consubstanciadores da prática de um crime, com o fim de ver instaurado procedimento criminal contra aquela, objectivo que logrou alcançar». E declara-o culpado de crime de denúncia caluniosa.
Esta sentença representa uma das mais significativas machadadas na tese da «lista negra». Registemos na íntegra o que disse, no julgamento, o advogado de «Roupinhas» tal como se encontra na respectiva certidão:
«O arguido [José Manuel Amaral] reconhece serem totalmente falsos e inverídicos os factos de que acusou a assistente [Marília Raimundo], os quais anunciou por inspiração de terceiros por motivos políticos.
«Por saber que a assistente é pessoa de bem, idónea, séria e bem formada, pede-lhe desculpa pelos incómodos que lamentavelmente causou com a imputação de falsidades que bem sabia não corresponderem à verdade, embora por inspiração de militantes do PSD, sendo porém certo que o arguido pessoalmente nunca imaginou nem quis que contra a assistente fosse desencadeado qualquer procedimento criminal.»
Condenado a prisão, com pena suspensa, «Roupinhas» vê-lhe, apesar de tudo, perdoada pela própria Marília Raimundo a indemnização que lhe exigia.
O «Roupinhas» não esclareceu, publicamente, quem o instigara e o Ministério Público pediu, expressamente, que tal fosse averiguado. Até hoje, nunca se soube... Mas é irresistível ver o dedo de Amaral, depois de tantas acusações que envolveram Jacinto Dias, Granja da Fonseca, Soares Gomes e João Gonçalves, a apontar para este grupo de quatro homens que constituíam, afinal, a «lista negra», o tal objecto que levara João Raimundo à prisão pela mão de outro cadastrado e que o mantinha preso, contra todas as tentativas de lhe ser conseguida a libertação até ao julgamento.
Os ecos da explosiva revelação do «Roupinhas» fizeram-se ouvir, de modo ensurdecedor, na Guarda. Mas, já na imprensa de expansão nacional, a contrastar com os grandes títulos de outrora, apenas A Capital, então dirigida pela jornalista Helena Sanches Osório, lhe deu o devido realce com um título de primeira página que terá inquietado muita gente: «“Vendetta” política revelada em Tribunal — “Gang” do PSD atacou Marília».
Apesar da fragilidade aparente do «episódio Roupinhas», e de ele se ter desenvolvido já com João Raimundo preso, há aqui matéria suficiente para nos interrogarmos: e se aquilo que ficou conhecido por «caso da “lista negra”» foi concebido para atingir Marília, sendo dirigido contra João só por causa dos processos desencadeados por Bernardo Duarte?
Este caso, que demonstra a fragilidade da tese da «lista negra» e cujo desfecho se verifica dois anos depois do julgamento em que João Raimundo foi condenado (apenas por ofensas corporais), deixa também um rasto incómodo para o PSD, que convém recordar.
Ainda em 1995, quando, na Guarda, a PJ — acreditando em «Roupinhas» — se mostra interessada em ouvir Marília, o agente Casaleiro faz um ofício (em 17 de Fevereiro de 1995) dirigido ao seu superior hierárquico Portugal a indiciar a mulher de João Raimundo como «co-﷓autora do ilícito penal».
Da Guarda sai, com esta informação, a sugestão de que a deputada deve ser ouvida como arguida. Euclides Dâmaso, à data director-geral adjunto da PJ de Coimbra, despacha tudo para o director-geral da PJ em Lisboa, Mário Mendes, a 20 de Fevereiro, defendendo que se pondere a «conveniência» de participar essa decisão ao presidente da Assembleia da República, segundo conta O Independente em 10 de Março.
E ainda Mário Mendes não tomara uma decisão, já a Rádio Altitude, na Guarda, o Público (a 28 de Fevereiro) e o jornal regional Terras da Beira (em 2 de Março) noticiavam que o director-geral da PJ comunicara com a Assembleia da República, o que aquele não fez senão em 2 de Março... O então ministro da Justiça, Laborinho Lúcio, não terá gostado, e a Procuradoria-Geral da República também não.
Já no próprio Parlamento, onde Marília é notificada directamente, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias ocupa-se do assunto, a pedido do presidente da Assembleia, Barbosa de Melo.
O parecer da Comissão é redigido pelo deputado Fernando Amaral (PSD) e apresenta-se muito crítico para com a acção da PJ, observando que o pedido de audiência da deputada Marília Raimundo «é da autoria de um agente da PJ e está na base das diligências posteriores do inquérito [tendo dado lugar] a todas as insinuações insidiosas, humilhantes e gravosas de que os meios de comunicação se fizeram eco, em manifesto prejuízo da dignidade e consideração que lhe são devidas».
No mesmo parecer, a Comissão comenta ainda que «um simples agente da PJ, ainda que competente, sabedor e honesto, não deveria assumir a responsabilidade legal de definir o tipo de crime e da idoneidade da denúncia que dá causa à abertura do inquérito, respeitante a um titular de um órgão de soberania».
O parecer foi aprovado em 18 de Maio, ficando a pairar algumas dúvidas sobre o que pensariam alguns deputados do próprio partido de Marília Raimundo...

CAPÍTULO 7

O DINHEIRO E AS SAIAS

Vimos como João Raimundo foi preso e incriminado e como Marília Raimundo esteve prestes a sê-lo, com base nas declarações dos homens da «lista negra», nas sugestões de Ângelo a Brígida e nas declarações falsas do «Roupinhas».
Os homens da PJ, José Casaleiro e Manuel Portugal, levaram por diante o seu inquérito, construíram as suas teorias (tendo que desistir da que se baseara nas declarações do «Roupinhas») e fizeram as suas acusações. Mas, a avaliar pelo registo escrito do processo, houve dois factores essenciais que foram considerados secundários: o dinheiro que teria sido dado por Brígida a Ângelo e a mulher que estaria na origem do conflito entre Brígida e Jacinto Dias. Estranhamente, as averiguações em torno destes pontos param (ou são paradas) a certa altura. Porque não havia nada? Porque isso não era relevante? Porque não encaixavam bem no que já tinha sido delineado?
O dinheiro sempre foi um enigma. E podemos interrogar-nos se ele existiria. Até porque Brígida, que contando com o salário da mulher teria um rendimento mensal de cerca de 100 contos, de acordo com os documentos constantes do processo, não disporia facilmente dessa soma.
Em 26 de Janeiro de 1995, num dos relatórios intercalares dirigidos pelo agente Casaleiro ao subinspector Portugal, escreve aquele: «Ainda no âmbito da investigação em curso estão a ser investigadas as contas pessoais dos dois arguidos dos presentes autos [Brígida e João Raimundo] e bem assim das instituições onde desempenhavam funções, visando descortinar a eventual saída dos 1 000 contos de alguma delas. Porém, até ao momento, ainda não se obtiveram resultados positivos.»
Qual seria, então, a origem do dinheiro, se existia? Foi mesmo João Raimundo quem lhos deu? Ou Brígida arranjou-os de outra forma?
Com a PJ ainda a demandar contas e bancos, em Janeiro de 1995, Brígida ensaia, muito desastradamente, uma primeira explicação para a proveniência do dinheiro:
«... Estava o depoente em Lisboa, na Avenida 5 de Outubro, onde está instalado o Ministério da Educação, quando se abeirou de si um indivíduo que não conhece que lhe perguntou se era o motorista do Dr. João Raimundo. Perante a resposta positiva do depoente, tal individuo entregou-lhe um embrulho, que logo o depoente se apercebeu tratar-se de dinheiro, dizendo-lhe tal pessoa que o mesmo se destinava ao pagamento de “uma sova” que deveria ser dada ao Dr. Jacinto Dias, não dizendo mais nada e desaparecendo.
«Esclarece que só viu tal indivíduo essa única vez, não sabe se ele era ou não funcionário do Ministério, nem as razões que determinavam que a vítima fosse o Dr. Jacinto Dias. Que se tal indivíduo lhe for presente, talvez o possa vir a reconhecer. No entanto, pode afirmar que se tratava de pessoa para idade entre os 35 e os 40 anos, bem constituído, cabelo escuro, liso, com risco ao meio, e vestido normalmente.»
A descrição do indivíduo ajusta-se ao português vulgar, com excepção estatística do risco ao meio. O gesto é que não. E, além disso, contraria tudo aquilo que Brígida dissera a Ângelo, pelo menos nas primeiras conversas. Por outro lado, ou o assunto era demasiado privado ou a cena nunca aconteceu... porque, no regresso à Guarda, conduzindo João Raimundo, Brígida já não toca no assunto.
Não há, portanto, registo nem memória de isto ter efectivamente acontecido e é legítimo pensar que isso, de facto, nunca aconteceu e que essa explicação, algo naif, terá deitado a perder a credibilidade da verdadeira explicação.
Porque só em Junho, finalmente, oito meses depois da prisão, é que viremos a saber tudo. Junho é, aliás, para Brígida, o mês decisivo, quer para a explicação da origem do dinheiro quer para o seu conflito com Jacinto Dias.
No dia 5 desse mês, realiza-se um auto de inquirição — muito esclarecedor — no Tribunal Judicial da Covilhã, com Brígida, o seu advogado e o advogado de João Raimundo.
Atenhamo-nos ao texto, onde Brígida surge na terceira pessoa:
«Trabalhou na Firma Morgado e Raimundo Lda, da qual era sócio o Dr. Raimundo na sequência de um pedido que fez ao padre Urbelino dos Santos Martins Pinto para lhe arranjar emprego, o qual terá por sua vez falado com o Dr. João Raimundo, sendo por esta via que o arguido veio a trabalhar na referida sociedade.
«Quando se dirigia ao arguido Raimundo costumava tratá-lo por “Sr. Doutor” ou “Sr. Presidente”, admitindo, porém, que em conversas com terceiros, nomeadamente com colegas, tratasse o arguido Raimundo por “Chefe”. Era amigo do arguido Raimundo e procurou sempre servi-lo com lealdade. Não se considera como tendo sido “um fiel servidor” do arguido Raimundo se se quiser entender com esta expressão que estava disposto a fazer qualquer coisa que aquele lhe pedisse.
«De facto, o arguido procurou desempenhar as funções que lhe eram confiadas pelo arguido Raimundo o melhor que soubesse e que fosse capaz desde que tais funções não lhe causassem prejuizo. Que o arguido Raimundo nunca comentou directamente para o depoente o facto de a sua mulher ter perdido as eleições para a Comissão Política Distrital do PSD. No entanto, em várias conversações que ouviu do arguido Raimundo para terceiros, nomeadamente colegas, aquele declarou que se sentia traído, digo aquele fazia comentários (exemplo: “tanto bem que lhes fiz...”), referindo-se a Jacinto Dias, Soares Gomes e João Gonçalves, donde o arguido extraiu a conclusão de que o arguido Raimundo se sentia traído por estas pessoas.»
Registe-se que Brígida interpreta o que ouviu dizer e mostra que se limitara a extrair conclusões.
É neste momento que surge uma primeira explicação, aparentemente mais plausível, para o dinheiro: «Quanto à quantia de um milhão de escudos que o arguido deu a Ângelo de Trancoso, tem a esclarecer o seguinte: nos princípios do Verão do ano passado e porque pretendia fazer obras em sua casa (pintura do interior e exterior) e não tivesse dinheiro, o arguido pediu a seu pai Luciano Augusto Rogado, residente em Marialva — Mêda, a quantia de um milhão de escudos destinada à efectivação de tais obras.»
Ora esse dinheiro nunca foi para as obras. Ouçamos Brígida:
«Tal dinheiro, porém, veio o arguido a entregar ao Ângelo de Trancoso a quem pediu e este acedeu em dar uma sova ao Dr. Jacinto Dias. Fê-lo porque o referido Jacinto Dias andava com uma assistente social, que prestava serviço na Casa do Povo de Foz Côa e com a qual ele vinha mantendo relações sexuais sendo certo que também o arguido vinha mantendo tais relações com a referida Manuela.
«Esse facto provocou ciúmes e mal estar entre o arguido e o Dr. Jacinto Dias (que entretanto ia comentando com terceiros que havia de “partir as trombas” ao ora arguido), razão pela qual o arguido resolveu contratar o Ângelo de Trancoso para lhe dar uma sova.
«Aliás, o mal estar entre o arguido e o referido Jacinto Dias vinha já de algum tempo antes, quando o arguido era presidente do Clube Desportivo e Recreativo de Solidariedade Social de Marialva e o Dr. Jacinto Dias era presidente do Centro Regional de Segurança Social da Guarda por este só haver entregue no ano de 1994 a quantia de 500 000$00 aquele clube, quando o PIDDAC previa que lhe fosse entregue a quantia de 1 000 000$00.»
E por que é que a explicação, indispensável, demorou tanto tempo? «O arguido não prestou antes esta declaração por saber que o seu pai e os irmãos dificilmente lhe perdoariam (esclarece agora que já perdoaram) o facto de ter utilizado o dinheiro que o pai lhe deu com o fim suprareferido. À pergunta feita, esclarece que ao dar-lhe a referida quantia, o pai lhe terá pedido para não dizer nada aos irmãos em virtude de não poder dar tal quantia a todos, digo em virtude de não estar disposto a dar igual quantia a todos.»
A explicação parece, finalmente, lógica e capaz de abrir outros horizontes à investigação policial e ao esclarecimento da verdade.
Vejamos. Há quem identifique a origem do dinheiro, há um motivo — suficientemente forte no cenário das violentas paixões portuguesas — para Brígida querer atacar Jacinto Dias. E tanto isto parecia plausível, apesar de poder fazer perigar a tese da «lista negra», que a PJ faz três coisas: identifica a citada Manuela — que será ouvida, na cena mais picaresca do processo —, investiga o pai de Brígida e ouve-o, depois, em inquirição.
Comecemos pelo «relato de diligência externa», datado de 9 de Junho, feito na Guarda e em Marialva e assinado não por José Casaleiro mas por um terceiro homem, o agente João Oliveira:
«Com o objectivo de se recolherem elementos tendentes a determinar com um grau de exactidão o mais acentuado possível, quanto à capacidade económica do pai de Luís Rogado, para dispor de um milhão de escudos, viemos a diligenciar nesse sentido. Apurou-se que, pese embora ele não seja um “homem rico”, foi emigrante durante largos anos em França, donde regressou há cerca de três, recebendo uma pensão daquele país. Vive desafogadamente em termos económicos, pelo que teria potencial económico para dispor daquela verba e dá-la ao filho.»
Em 13 de Junho, o pai de Luís Brígida, Luciano Augusto Rogado, residente em Marialva, de onde é natural, confirma tudo perante o mesmo João Oliveira:
«Que é de facto verdade ter dado ao seu filho Luís Rogado a quantia de um milhão de escudos, que ele lhe pediu para o arranjo da casa — pinturas interiores e exteriores — e para comprar umas mobílias.
«Sobre a data e circunstâncias em que ele lhe efectuou o pedido, referiu o seguinte:
«Que não consegue precisar com rigor a data em que o seu filho o procurou com essa intenção mas tem a ideia que foi “após a Páscoa do ano passado”, talvez «uns oito ou quinze dias depois”.
«Ele veio a sua casa num domingo. Quase todos os fins-de-semana ele vinha com a mulher e os filhos a sua casa. Chegavam no sábado, normalmente por volta do almoço, e ficavam até domingo à tarde. Ele perguntou-lhe se lhe podia dar mil contos para fazer pinturas em casa e comprar umas mobílias. Aliás, por se recordar melhor, refere que em primeiro lugar ele “pediu” o dinheiro à mãe e esta falou consigo sobre isso. Logo de seguida o Luís falou consigo e pediu-lhe. De pronto, ouviu o pedido feito e entregou-lhe aquela quantia em notas, que possuía guardada em casa. Já não se recorda de em que que parte da casa é que o seu filho falou consigo. De igual modo não consegue recordar-se se as notas eram todas do mesmo valor nem qual o valor das notas que estavam em maioria. Refere que ninguém assistiu ao pedido que o Luís lhe fez.»
O depoimento de Luciano não é assinado por o depoente não saber assinar. Junta-se ao processo... e aí fica. Morto e enterrado. Ninguém volta a falar no assunto. De tal modo que, no julgamento, se dá por provada a existência do dinheiro... mas não a sua origem e, sendo os mil contos declarados nessa altura perdidos a favor do Estado, a posterior anulação do processo (decidida pelo Supremo Tribunal de Justiça) acaba por implicar em teoria a devolução do dinheiro a Ângelo que, verdadeiramente, nunca se percebe se o tem... ou não.
Voltemos agora um pouco atrás e, bem acompanhados pela PJ, cherchons la femme.
Brígida nunca deixara de manter — no decurso dos interrogatórios a que continuava sujeito e devidamente apoiado pelas gravações — que fora ele próprio, por sua iniciativa, a sugerir, em diversos círculos, a contratação de alguém, para dar uma sova em Jacinto Dias, em primeiro lugar. Não contesta a matéria das gravações mas afasta qualquer ideia de que poderia estar a agir a mando do ex-﷓presidente do Instituto Politécnico. Jacinto Dias aparece sempre como o único e exclusivo objecto da sua ira.
A explicação temo-la pela mão do mesmo João Oliveira, que investigara a situação económica do pai de Brígida, e que descreve, do seguinte modo, a diligência externa feita para identificar e localizar a putativa amante de Brígida e de Jacinto Dias, no dia 8 de Junho:
«Com vista à identificação e localização da “Manuela”, referenciada pelo Luís Brígida, efectuámos alguns contactos com várias pessoas, tendo logrado obter a informação de que aquela se chama Maria Manuela Pereira de Sousa Vidal e presta serviço como assistente social no Serviço Sub-Regional de Segurança Social da Guarda, residindo na Rua do Povo, Bloco 3, r/c Dto., Guarda.»
Exactamente no mesmo dia, Manuela, então com 32 anos e no estado civil de casada, é ouvida na PJ, registando o auto de inquirição o depoimento que segue:
«... Conhece o arguido Luís Manuel Brígida Rogado, desde há largos anos, porquanto andaram no Liceu desta cidade ao mesmo tempo.
«Não obstante esse conhecimento de longa data, não há nem nunca houve qualquer amizade entre ambos. Conheciam-se, cumprimentavam-se e nada mais do que isso. Para além disso, porque é militante do PSD, vai às reuniões do partido, juntamente com o seu marido. Aconteceu encontrá-lo algumas vezes, muito poucas, nessas reuniões.
«Perguntada sobre se alguma vez teve algum tipo de relacionamento emocional ou sexual com o Luís Rogado, respondeu categoricamente que não. Que o relacionamento com ele sempre se reduziu e esgotou, como já referiu, num mero e banal conhecimento com cumprimentos circunstanciais.
«De igual modo e a nova pergunta, respondeu que também nunca se relacionou emotiva ou sexualmente com o Dr. Jacinto Dias. Conhece este senhor também há muitos anos, dado que ele era amigo do seu pai. Para além disso, é o director dos serviços onde presta trabalho. Existem entre ambos meras relações de amizade, naturalmente de trabalho.
«A inquirida refere que não consegue minimamente lobrigar que razões terão determinado o Luís Rogado a proferir as afirmações que fez. São completamente destituídas de verdade e fundamento. Sente-se chocada com o afirmado, o seu bom nome foi de forma baixa, fácil e gratuita posto em causa por ele, reservando-se desde já o direito de, oportunamente, o accionar criminalmente por esse facto.»
O que não aconteceu.
Em 12 de Julho, no Tribunal Judicial da Covilhã, realiza-se uma acareação em que participam Brígida e Manuela perante o juiz, a delegada do Ministério Público, Maria Amália Rolão Preto, e os advogados de Brígida e de João Raimundo, respectivamente Rodrigo Santiago e Nuno Godinho de Matos. Afastado, desde logo, da acareação, João Raimundo ainda pede para que ela seja repetida mas o pedido é-lhe negado.
Nas primeiras impressões, nessa reunião, Luís Rogado e Manuela limitam-se a repetir o que já tinham dito: ele, que obtivera o dinheiro do pai para atacar Jacinto Dias por causa dela, ela que não tinha nada a ver com ele.
Talvez por isso, é Brígida a avançar, jogando à defesa, com larga cópia de pormenores para tentar mostrar que tinha razão:
«... Em fins de Junho ou Julho de 1994, e após jantar com a depoente Manuela, em Moncorvo, dirigiram-se a um pub, em Vila Nova de Foz Côa, de onde saíram para casa, digo donde saíram e, deram um passeio, no fim do qual se deslocaram a casa da ora depoente, umas águas furtadas em Foz Côa, com três divisões, um quarto, uma casa de banho e uma cozinha ou hall, onde manteve relações sexuais com a depoente.
«Aliás, tais relações sexuais haviam já sido mantidas entre o arguido e a depoente, cerca de duas ou três vezes, em locais distintos (no carro, no campo...), acrescentando o arguido que as mesmas teriam ocorrido na estrada que liga Foz Côa a Almendra.
«Confrontada a depoente com as afirmações do arguido, supra expostas, pela mesma foi dito que nega ter mantido relações sexuais com o arguido e, designadamente, na casa, no carro, ou no campo. Porém, nessa altura, isto é, em Junho ou Julho de 1994, vivia em Foz Côa numas águas furtadas sendo certo que a casa tinha uma divisão ampla ou seja, a sala que também servia de quarto, uma cozinha, uma dispensa e uma casa de banho.
«Perguntada qual a razão da aparente coincidência entre a composição da casa, quer na sua versão quer na versão do arguido, por ela foi dito que a partir de Julho de 1994, data em que veio trabalhar para a Guarda até ao final do mesmo mês a referida casa esteve vaga, pretendendo o respectivo dono alugá-la pelo que, admite, que o arguido Rogado possa tê-la visto ou em qualquer outra altura, sem que a depoente tenha tido conhecimento. Esclarece que enquanto viveu na referida casa não tem conhecimento que o arguido Rogado aí tenha entrado em quaisquer circunstâncias. Nega ter tido, igualmente, quaisquer relações sexuais, ou de namoro, com o Dr. Jacinto Dias.»
Mas Brígida contra-ataca, com a desenvoltura de quem já percebeu que não vale a pena ser-se discreto:
«O arguido Luís Rogado deseja acrescentar que caso seja necessário pode fornecer alguns sinais que a depoente, pertençamente [sic] tem no corpo, designadamente nas costas.
E prossegue: «A pergunta feita esclareceu que na última vez que teve relações sexuais com a depoente, supra referida, já sabia ou melhor, desconfiava, que a mesma tinha relações sexuais com o Dr. Jacinto Dias, aliás, dessa vez, a depoente chegou mesmo a declarar tal facto ao arguido.
«A pergunta feita sobre a razão por que não obstante ofendido como se considera, e conhecedor de tal facto, manteve relações sexuais com a depoente, declarou que só nessa altura teve a certeza absoluta de que depoente mantinha também relações sexuais com o Dr. Jacinto Dias. Que quando a depoente lhe declarou que também mantinha o referido relacionamento sexual com o Dr. Jacinto Dias o arguido não reagiu. A pergunta feita esclareceu que caso não tivesse sido detido e, pela sua parte, continuaria o seu relacionamento com a ora depoente.»
A acareação não demoveu o Ministério Público nem o juiz presente, Francisco José Rodrigues de Matos, que decidiram manter a prisão de Brígida e de João Raimundo.
Não deram, assim, razão às intervenções dos dois advogados que tentavam mostrar como o caso da «lista negra» tinha mais do que a Comunicação Social sugeria e a acusação afirmava. E raízes de carácter mais humano que político. A acareação não deu origem a novas diligências, novas perguntas ou novas inquirições. Jacinto Dias, por exemplo, nunca foi chamado a contar a sua versão do alegado affaire.
E talvez seja de registar, de novo, que as investigações sobre a hipótese de ter sido o pai de Brígida a dar o dinheiro ao filho e sobre o papel da misteriosa Manuela não foram, depois das diligências do agente João Oliveira, desenvolvidas pelos dois homens da PJ, Portugal e Casaleiro, que se ocuparam, até ao mais ínfimo pormenor, de tudo aquilo que ajudou a construir a tese da «lista negra».
Quanto ao dinheiro, cuja existência é mesmo posta em dúvida pela defesa de João Raimundo e que só passa pelo julgamento, em Outubro de 1995, para ser oficialmente declarado apreendido, encontra-se uma outra referência muito esclarecedora.
É uma carta de Ângelo do Nascimento, datada de 8 de Março de 1995 e dirigida ao Delegado do Ministério Público da Covilhã. Nela, Ângelo recorda que solicitara um prazo para «acabar de fazer a entrega (...) do resto da quantia que recebeu do arguido Luís Brígida, relativamente à parte excedendo do que já entregou». Mas, acrescenta, como tem feito «inúmeras despesas relacionadas com o presente processo (...) não dispõe ainda (...) das quantias necessárias a satisfazer a entrega que se comprometeu a efectuar», solicita que lhe seja prorrogado o prazo para o efeito «por tempo não inferior a 60 dias». Dos autos não consta mais nada, nem a indicação de quanto — e quando — foi entregue... nem sequer a resposta que terá sido dada a Ângelo. Se é que a teve. E o dinheiro, a tal prova do aliciamento de Ângelo, desaparece...
Mais tarde, no julgamento da Covilhã, o tribunal limitar-se-á a dar esses mil contos como «depositados nos autos» e «perdido a favor do Estado», ganhando a soma em questão um carácter virtual. E nunca ninguém perguntará se os mil contos não terão servido, indirectamente, para pagar, de facto, um outro tipo de serviço...

PARTE III

UM CRIME POR MEDIDA

CAPÍTULO 8

UMA ACUSAÇÃO CONVENIENTE

No dia 25 de Abril de 1995, quando o País inteiro comemora o 21.º aniversário do 25 de Abril e da restauração das liberdades, é assinada a acusação que servirá de base ao julgamento de João Raimundo, preso — recordemo-lo — desde 15 de Novembro de 1994.
E nota-se que a acusação poucas novidades contém, relativamente a tudo quanto já se soubera pela Comunicação Social. Com excepção, talvez, da fórmula.
O crime escolhido para fundamentar a acusação, pelo Ministério Público da Covilhã, é o de «terrorismo na forma tentada», sendo a acusação movida contra João Raimundo e Luís Brígida e mantidas as duas situações de prisão preventiva, o primeiro, muito doente, no Hospital Prisional de S. João de Deus, em Caxias (Lisboa), e o segundo no Estabelecimento Prisional de Coimbra.
No texto, em 83 quesitos, o Ministério Público aponta, primeiro, para João Raimundo e chama depois à acusação Marília Raimundo, recordando os cargos de governadora civil, secretária de Estado e deputada e os cargos de presidente da Assembleia Geral da Comissão Política Concelhia do PSD da Guarda e do Instituto Politécnico de João Raimundo, para concluir que «em virtude dos cargos públicos que ocuparam e, ainda, por pertencerem a uma família considerada na região como detentora de considerável situação económica», os dois eram «tidos e conhecidos como pessoas importantes e influentes, quer pessoal quer politicamente».
Luís Brígida, nomeado em primeiro lugar pelo seu conhecimento de João Raimundo no liceu, como seu empregado e, depois, como motorista no Instituto Politécnico, é dado como «ligado, por laços de amizade e estima» ao casal, tratando, inclusivamente, João Raimundo como «chefe» e «sendo visto e tido na cidade da Guarda como um seu “fiel servidor”». Como já se escrevera...
João e Marília Raimundo aparecem em seguida, no texto, como personagens capazes de terem «influência no acesso a cargos políticos e profissionais de variadas pessoas», entre as quais se encontram Jacinto Dias, João Gonçalves e António Soares Gomes, «o que fez com que estas pessoas ficassem reconhecidas, e de certo modo dependentes» de João e Marília, «a ponto de lhes garantirem total apoio, quer a nível pessoal, quer a nível político» e encontrando-se, assim, inibidas «até de tomar determinadas posições contrárias aos interesses do casal Raimundo com receio de perderem os seus cargos».
A seguir, entra em cena o Sindicato dos Professores da Região Centro (SPRC) — membro da Federação Nacional dos Professores (Fenprof) —, por se ter pronunciado contra a nomeação de João Raimundo para a presidência do Instituto Politécnico, alegando que o nomeado não possuiria «perfil» ou formação para o cargo.
Na vertente sindical, no entanto, não são apresentadas provas de que qualquer dirigente ou activista deste sindicato estivessem incluídos na «lista negra». Nem parece ser tido como relevante, para o processo, que o arguido fosse dirigente de um sindicato e de uma federação sindical que eram ferozes rivais do SPRC e da Fenprof.
A acusação do Ministério Público inclui, também, um resumo do «caso Bernardo Duarte», inventariando as queixas deste docente de que teria sido ameaçado e visto o seu carro danificado, tal como Álvaro Guerreiro.
O processo de Bernardo Duarte serve, aliás, para dar destaque ao juiz de círculo, Granja da Fonseca, por ter sido antes objecto de um protesto — de conteúdo não pormenorizado — de João Raimundo para o Conselho Superior de Magistratura.
A presença de Granja da Fonseca, escreve-se na acusação, «desagradou ao arguido Raimundo em virtude de, por um lado, figurar como testemunha de acusação, no referido julgamento [Bernardo Duarte], um familiar daquele magistrado e, por outro, pelo facto de João Raimundo estar convicto de que o Dr. Granja da Fonseca subscrevera, alguns anos antes, um artigo, num jornal regional, que o visava de forma depreciativa».
Esse desagrado traduziu-se, acusava o Ministério Público, em diversas tentativas de João Raimundo para afastar Granja da Fonseca, num leque que ia da já citada queixa ao Conselho Superior de Magistratura até «vários telefonemas anónimos», aparecendo a ligação à «lista negra», finalmente, nos quesitos 34.º, 35.º, 36.º, 37.º, 38.º, 39.º, 40.º e 41.º, como segue:
«Ainda no decurso do julgamento, o arguido Raimundo confidenciou a Jacinto Dias que qualquer dia mandaria dar uma sova no juiz Granja da Fonseca, que presidia ao colectivo que o julgava,
«Em dia indeterminado de finais de 1992, decorrendo ainda aquele julgamento, o arguido Luís Brígida encontrou-se com Mário do Nascimento, irmão de Ângelo do Nascimento, nas proximidades de um estabelecimento conhecido como “tasca do Acácio”, sito na freguesia de Marialva, concelho de Mêda,
«A quem propôs que, a troco de 2 000 contos [sic], arranjasse alguém capaz de dar uma sova no juiz Granja da Fonseca, no prof. Bernardo Duarte, no jornalista da Rádio F, Rui Isidro e no advogado Álvaro Guerreiro.
«O referido Mário do Nascimento tinha conhecimento que o Dr. Álvaro Guerreiro era advogado do seu irmão Ângelo, pelo que, algum tempo depois, lhe comunicou esse facto numa altura em que o encontrou à saída do Tribunal de Vila Nova de Foz Côa, quando se fazia acompanhar daquele seu irmão Ângelo.
«Logo após a conclusão do supra referido julgamento, que culminou com uma condenação do arguido João Raimundo numa pena de 2 anos e 6 meses de prisão, cuja execução ficou suspensa por dois anos, ocorreram eleições para a Comissão Política Distrital da Guarda do PSD, às quais concorreram duas listas encabeçadas, respectivamente, por Marília Raimundo, então presidente, e Álvaro Amaro,
«O qual acabou por ser eleito, designadamente, com o apoio de pessoas que anteriormente sempre tinham apoiado Marília Raimundo, nomeadamente Jacinto Dias, João Gonçalves e António Soares Gomes, entre outros,
«O que foi considerado pelo arguido Raimundo como uma traição, o qual referiu por diversas vezes ao co-﷓arguido Luís Brígida que essas pessoas eram uns traidores e que mereciam uma sova, tendo este último lhe referido que arranjaria alguém que poderia executar essa tarefa.
«Para início de execução da mesma, o arguido João Raimundo entregou ao co-arguido Luís Brígida a quantia de um milhão de escudos».
A história dos encontros entre Luís Brígida e Ângelo do Nascimento aparece a seguir, terminando com uma descrição viva da intervenção da PJ, nos quesitos 76.º a 82.º (que, no entanto, volta a não condizer com o teor das gravações):
«Ao saírem da viatura, o Ângelo apresentou ao arguido Luís Brígida o agente da Polícia Judiciária Carlos Barata, que os esperava, como sendo um dos homens que contratara para agredir Jacinto Dias,
«Tendo, de novo, e na presença deste, o arguido Luís Brígida confirmado que a agressão ao juiz Granja da Fonseca passava pela ordem expressa do Dr. Raimundo, ora arguido, que se encontrava em Macau.
«O encontro entre o arguido Luís, o Ângelo e o agente Carlos Barata foi fotografado constando as mesmas fotografias junto aos autos (...) e que aqui se dão como integralmente reproduzidas.
«Com a execução do plano atrás descrito, previamente acordado entre ambos os arguidos, pretendiam, os mesmos, ofender a integridade física do advogado Álvaro Guerreiro, do prof. Bernardo Duarte, de Jacinto Dias, do juiz Granja da Fonseca, de João Gonçalves e de Soares Gomes,
«Pessoas que, na perspectiva do primeiro arguido o haviam prejudicado politica, pessoal e profissionalmente, pelo que as agressões de que iam ser vítimas tinham como objectivo intimidá-las no sentido de, por um lado, as fazer mudar de actuação e, por outro, as castigar por posições anteriormente assumidas,
«E só não foram concretizadas por motivos totalmente alheios às suas vontades e desígnios.
«Os arguidos, ao actuarem, concertadamente, no modo e circunstâncias descritas, agiram voluntaria, livre e conscientemente.
«Bem sabendo que as suas condutas não eram permitidas e contrárias à lei.»
Esta versão dos factos, apresentada pelo Ministério Público da Covilhã nesse mês de Abril de 1995, segue à risca as conclusões da polícia e a versão que já circulara na Imprensa logo após a prisão de João Raimundo. Avancemos duas hipóteses: ou as conclusões da investigação estavam correctas ou a conspiração tinha sido bem preparada por quem sabia de como se exercitam as leis.
O Dia da Liberdade não é, nesse ano, um dia de festa para a família Raimundo. João está, na prisão, cada vez mais doente. Marília sabe que não é acusada no «caso Roupinhas» mas o pesadelo não terminara. E a filha de ambos afasta-se, perturbada pelo que está a acontecer.

CAPÍTULO 9

«UMA HEDIONDA E PREMEDITADA ARMADILHA»
Depois de conhecida a acusação contra João Raimundo, em Abril de 1995, a Guarda transforma-se, aí sim, num verdadeiro campo de batalha... mas pela justiça.
A acusação teve uma resposta imediata de Nuno Godinho de Matos, advogado de João Raimundo. Advogado experiente e bem conhecedor dos meandros judiciais, Nuno Godinho de Matos estudara a fundo a matéria. E ficara a conhecer bem João Raimundo quando, ao perceber como a saúde do ex-presidente do IPG corria perigo na prisão, passou a ser visita assídua na prisão. Mais do que a desagradável situação de um simples cliente, estavam em causa a vida e a saúde de uma pessoa.
Essa perspectiva, o conhecimento profundo da situação e das pessoas e a percepção de como fora possível tecer uma teia tão bem tecida e tão bem amparada na legislação, dá um vigor excepcional à contestação de Nuno Godinho de Matos, que desmonta a tese do «terrorismo na forma tentada» no requerimento de instrução dirigido ao Ministério Público da Covilhã. Que este, no entanto, rejeita tal como já havia rejeitado diversos pedidos de libertação e outras solicitações interpostas pela defesa do ex-presidente do Instituto Politécnico da Guarda.
O advogado sistematiza já, de forma muito clara, todas as dúvidas que suscitam os pressupostos da acusação, onde quase fazem doutrina não apenas as conclusões subscritas pelos agentes da PJ mas também as queixas dos homens da «lista negra». E as gravações. E, quando as põe em causa, atacando a raiz de toda a acusação, Nuno Godinho de Matos está a apontar o que está errado... tendo que esperar quase quatro anos para que o Supremo Tribunal de Justiça lhe desse razão.
O que esté em causa, alega, é um «crime por medida»:
«1. A leitura do presente processo gera perplexidades tão surpreendentes que o mandatário do requerente [João Raimundo], depois de o ter lido e estudado, sabendo que o seu mandante está preso há cerca de seis meses, só é capaz de formular a conclusão seguinte: que o futuro permita que nunca seja submetido à provação de se cruzar com um processo penal.
«2. O processo e a prisão do requerente, perante a lei penal, são incompreensíveis, mesmo quando só se exigem indícios.
«3. Os factos e as intenções que estão em causa neste processo, a admitir que os mesmos são verídicos, incluindo as intenções — e admitindo que simples intenções são puníveis — no máximo lógico e possível indiciariam o desejo de praticar um crime de ofensas corporais ou, ainda, se se quiser ir mais longe, um crime de ofensas corporais com dolo de perigo. Nunca um crime de terro-rismo.
«4. Contudo, como no crime de ofensas corporais e mesmo no crime de ofensas corporais com dolo de perigo, a moldura penal não era suficiente para justificar a prisão preventiva, então, encontrou-se outro crime.
«5. Encontrou-se um outro tipo de crime, justificando a prisão preventiva que, entretanto, se mantém, pois este castigo já ninguém lhe tira de cima, nem mesmo uma acusação.
«6. Mas se, quanto à polícia ainda se pode entender a aplicação dum tipo de crime por “medida”, pois importa justificar o tempo consumido pelos funcionários com a investigação, tal actuação já gera alguma perplexidade quando é seguida por outras entidades. Isto é, quando se acusa um cidadão por um tipo de crime não aplicável aos factos e intenções.
«7. Escolheu-se um tipo de crime que não se pode aplicar aos factos constantes da acusação! Nem mesmo às eventuais intenções do arguido; intenções que lhe sejam atribuídas partindo das ilícitas gravações que constituem todo o corpo de delito.
«8. Neste processo, existe uma única realidade: as gravações das conversas dum arguido com o “falso polícia Ângelo de Trancoso”. Nada mais. Tudo o resto é a repetição por diversas pessoas do conteúdo dessas gravações.
«9. Essas diversas pessoas contaram umas às outras o conteúdo das gravações. Seguidamente, as mesmas, por diversas vezes, vêm aos autos repetir o conteúdo das ditas gravações.
«10. O processo desenvolve-se total e absolutamente segundo o esquema de pescada de rabo na boca. A disse a B que, por sua vez, referiu a C, o qual fez saber a D, que seguidamente contou a E, que do mesmo modo reproduziu perante F, G e H, os quais, depois, comunicaram a I, J, K e L, e assim sucessivamente até à acusação.
«11. Por surpreendente que seja, isto é o que sucede neste processo. Neste processo, existem as declarações do cadastrado “falso polícia Ângelo de Trancoso”, repetidas por imensas pessoas, incluindo um meritíssimo senhor juiz. Nada mais!
«12. Além disso, existe a falsificação de uma sova dada a um dos queixosos [Recordemos que Ângelo dissera a Brígida que Jacinto Dias já fôra agredido.]. Isto é, existe uma mentira consumada, no mínimo com o conhecimento da polícia.
«13. Existe a mais chocante e perversa instigação à prática do crime de ofensas corporais por parte do “falso polícia Ângelo de Trancoso” e de todos aqueles que, sabendo não ser verdadeira a pretensa sova dada ao queixoso Jacinto, contribuíram para criar essa falsidade, essa aparente realidade e a mantiveram silenciada, com o intuito de fazerem investigação penal por conta própria. Diga-se de passagem que, para acusar por tentativa de terrorismo, é muito pouco e para prender é muito menos.
«14. Então, prende-se uma pessoa com mais de cinquenta anos, sem o mínimo antecedente criminal, com base em: 1.º) gravação de conversas feitas por um antigo cadastrado; 2.º) conversas cujo conteúdo é repetido por várias pessoas, incluindo os queixosos, imensas vezes nos autos; 3.º) falsificação de factos transmitidos a um arguido, criando a falsa aparência de que algo tinha sucedido, para provocar esse arguido e o agora requerente à prática de um crime de ofensas corporais sobre o meritíssimo senhor juiz Granja da Fonseca e outras pessoas?
«15. Salvo o devido respeito, uma prisão consumada nestes termos é incompreensível, podendo ser qualificada em termos que só não se adjectivam por imperativos de ordem deontológica.
«16. Dirá, porém, neste momento, o meritíssimo senhor juiz de instrução: e o pagamento de mil contos ao “falso polícia Ângelo de Trancoso”? Como se esqueceu o senhor advogado do mesmo?
«17. Acontece, porém, que não esqueceu. Como se compreende que esse dinheiro, se algum dia existiu, não esteja apreendido à ordem do processo? Onde estão os mil contos? Será que algum dia existirão? Se existem, porque não foram apreendidos como, nos termos da lei, tinham de ser?
«18. Será que a polícia quis deixar o “falso polícia Ângelo de Trancoso” beneficiar desse dinheiro, obtido nas circunstâncias documentadas nos autos, esquecendo-﷓se de o apreender, apesar do “falso polícia Ângelo de Trancoso” ter declarado que estava pronto a entregar o mesmo imediatamente.
«19. Ou será que esse dinheiro nunca existiu, dado que o mesmo não foi apreendido?
«20. Ou será, ainda, que o “falso polícia Ângelo de Trancoso”, além de ter brincado aos agentes da polícia infiltrados, depois de ter descrito uma sova que nunca existiu, mentindo, deliberada e premeditadamente (como os autos documentam) para induzir a prática de outros crimes, ainda beneficia, por omissão do cumprimento dos deveres da polícia e da instrução do inquérito, dos mesmos mil contos?
«21. Esta última hipótese não é crível. Isto é, a polícia não se pode ter esquecido de que tinha o dever de apreender esse dinheiro. Também não é crível que o Ministério Público se tenha esquecido de que o tinha o dever de ordenar a apreensão do mesmo, nos termos do artigo 178.º do Código de Processo Penal.
«22. Como estes esquecimentos não são críveis, nem sequer são admissíveis, e como os mil contos não estão apreendidos e depositados na Caixa Geral de Depósitos, os mesmos, obviamente, não existem. Nunca existiram.
«23. Não se diga, agora, que não foram apreendidos porque o “falso polícia Ângelo de Trancoso” estava disposto a entregá-los quando fosse necessário. Como não entregou, só se pode concluir que os mesmos não existem, tendo também aí mentido, como já mentiu quando disse que tinha batido no queixoso Jacinto, instigando à prática de crimes.
«24. Esta é a matéria do processo: gravações ilegais e ilícitas; factos que não existiram apresentados como verdadeiros, para induzir terceiros à prática de crimes; mil contos alegadamente entregues para pagar o preço da prática dum crime, que nunca foram apreendidos ou por incompreensível negligência das autoridades competentes, ou porque nunca existiram, como é, obviamente, o caso.
«25. Com base nisto, acusar e prender é incompatível com a inteligência humana e com o direito. A menos que se tenha deixado de viver num Estado de Direito, como pode pensar um observador menos atentos que leia o presente processo.»
Nuno Godinho de Matos tece, depois, considerações sobre o crime de terrorismo, de definição recente e «praticado pela primeira vez, como uma manifestação da “guerrilha urbana” desenvolvida por organizações políticas das nações da Palestina e do Norte de África de extrema-esquerda».
O advogado separa o crime de terrorismo que, «mesmo na forma tentada exige uma componente política ou ideológica muito forte que nestes autos não existe», da motivação alegada pela acusação: «intimidar certas pessoas»... que nem sequer tem que ver com a paz pública.
Salientando que «nem tentativa existe, só existem actos preparatórios mesmo seguindo a factualidade da acusação», Nuno Godinho de Matos defende que «o Tribunal não pode acusar com base numa ficção criada pelo “falso polícia Ângelo de Trancoso”, sabe-se lá com que cumplicidades».
Este, recorda, «não é, sequer, um agente da polícia infiltrado nas relações dum criminoso, com o fim de obter informações destinadas ao inquérito policial» mas sim alguém que «actua como um verdadeiro provocador e instigador do crime, promovendo a prática do mesmo, quer com as mentiras que propala (a sova dada no queixoso Jacinto) quer com o conteúdo das suas falas constantes das gravações, insistindo, sistematicamente, no desejo de ordens para ir bater no juiz [Granja da Fonseca]».
Arrasador, nota Nuno Godinho de Matos que «o conteúdo das falas do “falso polícia Ângelo de Trancoso” é nauseante, sendo revoltante a instigação ao crime constante das mesmas e obrigando a leitura das mesmas a fazer a seguinte pergunta: quem lhe encomendou o recado? Ao serviço de quem trabalha o “falso polícia Ângelo de Trancoso”?»
E acrescenta: «Se o conteúdo geral das falas do dito senhor provoca a náusea e a pergunta que se formulou, a frase transcrita em último lugar “Talvez antes do julgamento, que é pró alvo... ficar intimidado...” obriga mesmo a perguntar quem lhe terá ensinado a mencionar o verbo intimidar nesta conversa? Seguramente alguém que conhece o Código Penal e o tipo legal do crime de terrorismo. O fato cai como uma luva!»
«Não estará já patente e claro que o presente processo encerra uma hedionda e premeditada armadilha montada a um cidadão livre da República? Não têm os processos criminais de ser sérios, no modo como são instruídos? Será que os processos-crime são compatíveis com actuações como a do “falso polícia Ângelo de Trancoso”? Pode um cidadão estar preso com base numa instrução como a que agora se analisa? Pode-se, em processo penal, induzir um homem de pouca cultura a dizer tudo e mais alguma coisa, inclusive a fazer especulações, para, depois, se acusar e prender um outro homem?», pergunta Nuno Godinho de Matos.
Este documento, onde o advogado considera não puníveis os actos preparatórios do crime de terrorismo a ser aceite a tese da acusação e onde se defende a nulidade das gravações, contém, ainda, uma referência — importante — ao «Roupinhas»... numa altura em que este, depois de ter sido apresentado pelo grupo da «lista negra» quase como uma prova viva, deixara de gozar de credibilidade junto da PJ.
«Quem levou o cadastrado “Roupinhas” a ir contar à polícia e a várias pessoas, designadamente, ao Meritíssimo Senhor Juiz de Direito, o queixoso Sr. Dr. Granja da Fon-seca, a história por ele contada, levando esse magistrado a prestar as declarações que prestou nos autos?», interroga.
Perguntando por que motivo «se pretendia incriminar, também, a mulher de João Raimundo», Nuno Godinho de Matos observa, de seguida, que «o processo resume-se, pois, às gravações, à sua repetição por outras palavras, estilo redacção da quarta classe, e à diatribe de alguém que se desconhece através do cadastrado “Roupinhas”, que não se sabe como apareceu no processo e na polícia».
Ao avançar com o pedido de anulação, como prova, das gravações por serem «gravações particulares» (pedido a que só o Supremo Tribunal de Justiça irá dar razão), e recordando que mesmo a polícia, «se quiser gravar as conversas telefónicas de um cidadão tem de, primeiro, pedir autorização a um juiz de instrução (...) sendo nulas as gravações de conversas telefónicas obtidas fora deste condicionalismo», Nuno Godinho de Matos estava bem acompanhado, como viria a confirmar-se.
Três meses depois, em Julho, Manuel da Costa Andrade, professor da Faculdade de Direito de Coimbra, e Marcelo Rebelo de Sousa, o professor da Faculdade de Direito de Lisboa que seria eleito presidente do PSD em 1996 na sequência das derrotas eleitorais de Cavaco Silva, produzem dois pareceres sobre as gravações. Que não deixam margem para dúvidas: elas são mesmo inaceitáveis. E, sendo-o, só faria sentido o arquivamento do processo pois não haveria prova bastante para a acusação.
Mas vamos aos pormenores destas peças de artilharia pesada, que fazem parte da mesma guerra.
No seu parecer de doze páginas, datado de 30 de Julho, Marcelo Rebelo de Sousa socorre-se da Constituição (art.º 32.º) para recordar que «são nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações».
Distinguindo a intromissão abusiva da que pode ser feita em casos legalmente justificados em matéria de processo criminal — recorde-se que as conversas com Brígida foram gravadas por Ângelo antes de haver processo e sem autorização judicial —, Marcelo remata: «É possível extrair a conclusão de que é inconstitucional norma legal ou interpretação de norma legal que permita a utilização, em processo penal, de gravação por cidadão de conversa telefónica com outro cidadão, não tendo existido prévia autorização judicial ou jurisdicional.»
Por seu turno, Manuel da Costa Andrade, no seu parecer de 22 páginas com data de Agosto, vai mais longe.
Observando que «o mero propósito de produzir, juntar, salvaguardar e carrear provas para o processo penal não justifica o sacrifício do direito à palavra em que invariavelmente redundam a produção ou utilização não consentidas das gravações», aponta o dedo acusador a, pelo menos, Ângelo de Trancoso:
«a) A gravação feita por B preenche a factualidade típica do crime de Gravações e fotografias ilícitas (art.º 179.º do Código Penal) à margem de qualquer causa de justificação. É, por isso, uma gravação penalmente ilí-cita. (...)
«c) A ordem jurídica portuguesa (art.º 167.º do Código de Processo Penal) denega expressamente qualquer eficácia justificativa em relação às gravações produzidas com o único propósito de servir os fins próprios do processo penal: juntar provas em ordem a uma mais eficaz perseguição dos autores de infracções criminais.
«d) A conduta de B — gravação das conversas com A sem o conhecimento nem o consentimento deste — não está justificada pelo princípio da prossecução de interesses públicos legítimos porque este derimente da ilicitude não está expressamente previsto para o crime do art.º 179.º do Código Penal. Como não está justificada pelo princípio de ponderação de bens, sob a forma de direito de necessidade (art.º 34.º do Código Penal) porque a gravação não era meio necessário ou idóneo para afastar o perigo que corriam a vida ou a integridade física das pessoas supostamente ameaçadas. Para afastar o perigo bastava apenas que B se recusasse pura e simplesmente a levar a cabo as agressões que lhe terão pedido que realizasse.
«e) A valoração não consentida da gravação em processo penal é um facto penalmente ilícito.
«f) Esta valoração está em qualquer caso excluída porque a tanto se opõe uma invencível proibição de valoração. E isto quer a gravação tenha sido produzida de forma penalmente ilícita quer de forma não ilícita (porque atípica ou típica mas justificada).»
A estes dois juristas, junta-se, ainda, um terceiro, Jorge de Figueiredo Dias, professor da Faculdade de Direito de Coimbra, que, num parecer de 28 páginas datado de Junho, analisa pormenorizadamente a acusação de crime de terrorismo, dando mais força à refutação do pressuposto essencial da acusação.
Afirma Figueiredo Dias: «O crime de ofensas corporais alegadamente projectado pelos arguidos não tinha a presidir-lhe a intenção terrorista de intimidar certas pessoas, no sentido que esta expressão colhe dentro do tipo do art.º 289.º [do Código Penal]».
E acrescenta: «Desde logo, resulta positivamente dos factos narrados nos autos que a actuação dos arguidos seria, quando muito, guiada por um sentimento de vingança. Por outro lado, não resulta dos mesmos factos que os arguidos tivessem uma intenção de intimidar qualquer das supostas vítimas, pois não se indica qual a “mudança de actuação” (acção ou omissão) que os primeiros esperariam obter das segundas.
«Além disso, e decisivamente, o objecto da alegada actuação dos arguidos era constituído exclusivamente por determinadas pessoas contra quem os moviam motivos pessoais, não contra um círculo de pessoas, identificável por uma circunstância comum, que transcendesse em amplitude a soma dos ditos indivíduos.
«Não poderia estar presente, pois, a intenção terrorista de intimidação que causa um dano à paz pública, pelo que não se encontraria presente um dos elementos necessários ao preenchimento do tipo do art.º 289.º.
«Pese embora as razões precedentes serem de molde a impossibilitar a responsabilização dos arguidos por um crime de terrorismo, ocorre ainda mostrar que os factos acusados não podem ser imputados subjectivamente aos arguidos.»
Ou seja, «os arguidos não poderiam ser considerados autores imediatos de um crime de terrorismo, pois terão alegadamente encarregado alguém de o perpetrar contra o pagamento de uma quantia em dinheiro [e] não poderiam ser punidos como instigadores de um crime de terrorismo, pois o art.º 22.º do Código Penal restringe a punibilidade do instigador aos casos em que exista um começo de execução por parte do instigado que, in casu, não se verificou».
«Ainda que se entenda que a lei admite, em abstracto, a possibilidade de punição do autor mediato independentemente de um começo de execução por parte do autor imediato, não são imputados aos arguidos factos que constituam, para os efeitos da punição da tentativa prevista no art.º 22.º, actos de execução do crime», afirma Figueiredo Dias, concluindo:
«Na verdade, o pagamento de uma quantia em dinheiro e a comunicação de informações acerca do modo de execução do crime não preenchem um elemento constitutivo de um tipo de crime, nem são idóneos a produzir o resultado típico — in casu, lesões corporais com intenção de intimidar —, nem são de natureza a fazer esperar no caso dos autos, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, que se lhes sigam actos das espécies precedentes.
«Sendo certo que o art.º 289.º do Código Penal não pune os actos preparatórios, os factos narrados na acusação não importam a prática de um crime de terrorismo tentado por parte dos arguidos.»
Estes textos, essenciais para a compreensão do caso, são armas importantes na guerra de nervos que se desenrola entre a rentrée de Janeiro e o julgamento em Outubro. Mas não são as únicas, até porque a guerra se desenvolve em várias frentes: na frente judicial, no caso da defesa de João Raimundo (e de Luís Brígida); na policial, nas actividades desenvolvidas pelos agentes da Judiciária; na da política educativa, no quadro das eleições para a presidência do IPG; e na da opinião, nos órgãos de comunicação social, onde continua a assomar, sempre, a regra de um vale-tudo que, visto de forma distanciada, vai revelando fraquezas, fragilidades e cumplicidades insuspeitadas.
Foi o caso, por exemplo, da Rádio Altitude. Esta estação de rádio, então dependente da direcção do Hospital Distrital da Guarda por razões históricas, transformou-﷓se num dos acusadores públicos de João Raimundo.
A quantidade e a discutível qualidade das muitas afirmações produzidas pelos seus jornalistas Gabriel Correia, director da estação, e Madalena Ferreira deram origem à maioria dos processos que João e Marília Raimundo moveram contra vários jornalistas por difamação.
E que havia razão para isso, mostra-o um apontamento de reportagem que o autor deste livro publicou no Diário de Notícias de 6 de Maio, dando conta de uma visita a um compartimento existente dentro do gabinete da presidência do IPG, que fora ocupado por João Raimundo. Para a Rádio Altitude, havia lá um bunker. Mas o jornalista encontrou outra realidade bem diferente:
«... De um lado, estantes (com um chaveiro e de onde a Polícia Judiciária levou documentação); do outro uma casa de banho.
«Lá dentro nada parecia ter de enigmático mas, nos noticiários da Rádio Altitude, esse duplo compartimento era um bunker. Conta Gabriel Correia: “Houve uma vistoria da PJ ao IPG e foi quando descobriu lá o tal bunker. A PJ diz que existe, que entre a casa de banho e outro compartimento qualquer há uma parede giratória ou qualquer coisa dessas. Eu, por acaso, nunca lá fui...”» Ou seja: ele nunca foi ver mas garantia que havia. Em termos de deontologia estamos conversados.
«Novela casal Raimundo», «histórias diabólicas», «João Raimundo sabia de tudo, fazia o respectivo relatório, utilizado, quantas vezes, como chantagem», «o bunker, com acesso directo pelo gabinete oficial do presidente estava disfarçado com uma estante e afinal não passa de uma porta giratória» — estas e outras expressões fazem parte, só, de duas das muitas peças radiofónicas que a Rádio Altitude dedicou militantemente ao assunto.
E na guerrilha que a Rádio Altitude parece conduzir, nem poderia faltar uma tentativa de vitimização, de que a Lusa se fez eco, levando a que, no dia 13 de Maio, os jornais se dêem conta de uma insólita tentativa de «sabotagem» contra a Rádio Altitude.
Do seguinte modo: «Cabos de aço de segurança das antenas de onda média da Rádio Altitude, da Guarda, foram cortados com alicates de grande força na tentativa de causar insegurança no equipamento, disse o director da estação (...) Gabriel Correia adiantou que “os autores deste acto de vandalismo procuraram criar problemas à Rádio Altitude” [que] tem tido outros problemas, citando o caso de, pelo menos, três jornalistas (...) que estão sob instauração de cerca de uma dúzia de processos judiciais, todos relacionados com o caso do ex-presidente do Instituto Politécnico local, João Raimundo, há meio ano detido em Caxias».
Isto passava-se na Guarda. Mas, no resto do País, a Comunicação Social continuava a fornecer uma moldura de comentários desfavoráveis, sempre taxativos, feitos por opinion makers e dirigentes políticos que, sem terem alguma vez observado de perto o caso, por certo não podiam deixar de influenciar quem, numa ou noutra esfera, iria tomar as primeiras grandes decisões sobre o preso João Raimundo.
Vejamos, recuando ao ano de 1994, o que escrevia Paulo Portas — em 18 de Novembro desse ano — em O Independente, jornal que então dirigia, numa peça significativamente intitulada «Al Capone nas Beiras»:
«O Dr. João Raimundo era presidente do Instituto Politécnico da Guarda. A única razão para desempenhar essa função era ser casado com uma deputada do PSD, ao tempo a “coronela” do distrito. Tinha, portanto, uma legitimidade de marido. Por isso e só por isso, o partido deu-lhe um cargo público, dignidade de Estado, salário melhor e chauffeur. (...) O Dr. João Raimundo tinha um motorista que, além de conduzir, parecia vocacionado para actividades dignas de Al Capone. É nas mãos do motorista que surge uma lista de “assassinatos potenciais”. Suspeita-se que o dr. João Raimundo fosse o instigador de má sorte que podia acontecer aos seus inimigos jurados...»
E, sobre o mesmo assunto, escreve o futuro (embora temporário) deputado do PSD, Vasco Pulido Valente, na mesma edição:
«... o alegado “terrorismo” do nosso Raimundo parece pequeno e frívolo: questiúnculas na Politécnica da Covilhã [Na Covilhã?! Na Covilhã existe uma universidade e não um instituto politécnico...], insignificantes eleições na “distrital” do PSD, a surpreendente vitória do eng.º Amaro e uma suposta “lista” de vítimas, entregue a um putativo “vingador”, de mão fraca e coração mole denominado Brígida. Nem a nobre deputada Marília, de lírica memória, tenta competir com a sra. Macbeth. Em vez de pedir sangue, proclama nos jornais a sua inocência e chora os seus privados prejuízos.»
Detenhamo-nos, ainda, em Novembro. Em 21 desse mês, o deputado e dirigente comunista João Amaral, actualmente considerado um dos «renovadores» do PCP, faz, na sua coluna do Jornal de Notícias («Um JR de trazer pela Guarda»), as seguintes afirmações:
«Condenado, o Dr. João Raimundo terá feito a famosa “lista negra”: o juiz que o condenou, o advogado de acusação, alguns membros da “distrital” que se “passaram” para o actual líder da distrital, o secretário de Estado Álvaro Amaro, que derrotou a sua mulher por escassos cinco votos. Terá encarregado o seu motorista, também preso, de contactar profissionais em agressões e outras operações terroristas. Assim terão chegado ao Ângelo “Trancoso”, um conhecido operacional da rede bombista que em 1975 saqueou e incendiou sedes de partidos de esquerda e agrediu e assassinou militantes desses partidos, incluindo do PCP.» E, logo a seguir, refere-se, sem margem para dúvidas, à «denunciada relação entre quadros do PSD e um grupo terrorista que assolou o país em 1975».
Faz parte do anedotário popular a constatação de que uma mentira muitas vezes repetida se transforma em verdade... sem que, nesta espécie de julgamento popular a que a Imprensa deita mãos, funcione, sequer, o princípio jurídico que se traduz na expressão in dubio pro reo: ou seja, o réu tem direito à dúvida sobre a sua culpabilidade.
Veja-se como, em 25 de Novembro de 1994, no jornal Matosinhos Hoje, o cidadão Artur Ribeiro (identificado com fotografia e como «comerciante e dirigente do PCP»), garante, taxativamente: «Entretanto, João Raimundo encarregou o seu motorista de contactar alguns profissionais da agressão e do terrorismo...»
Esta verdadeira acção ofensiva prolonga-se, naturalmente, pelo ano de 1995. Em 19 de Janeiro, no jornal Açores, André Bradford (identificado só com fotografia) assevera, também sem dúvidas de espécie nenhuma:
«O sr. João Raimundo, ex-presidente do Instituto Politécnico da Guarda (IPG) e marido da deputada do PSD daquele distrito, Marília Raimundo, elaborou uma lista de pessoas, do PSD e não só, que pretendia eliminadas, para que ele a sua mulher prolongassem o seu domínio caciquista e feudal no distrito. Para isso, tinha inclusivamente contratado o seu motorista, um ex-operacional da rede bombista do ELP [sic]. O que valeu é que o tal motorista era amigo de um dos visados e decidiu não fazer o serviço e denunciá-lo à Polícia [O motorista?!].»
E nem Marília Raimundo escapa. No jornal local Terras da Beira, em 23 de Março de 1995, em texto não assinado, garante-se que a deputada «foi acusada de tentar contratar operacionais contra os elementos que levaram à prisão JR e motorista» e que «parece credível que, caso se confirme a suspeita, vá também parar à prisão».
De mais longe, do Alentejo, a 24 de Março, no jornal Diário do Alentejo, também vem uma opinião idêntica: «De referir o curioso facto da deputada do PSD Marília Raimundo, que terá aliciado um “operacional” para organizar acções intimidatórias sobre testemunhas importantes do caso da chamada “lista negra” da Guarda.»
Mas, neste quadro de guerra — onde as críticas misturam, como iguais, João e Marília Raimundo e a direcção nacional e local do PSD cavaquista — há uma frente que parece finalmente pacificar-se, embora por pouco tempo: o próprio Instituto.
Nas eleições descem a terreiro só duas figuras locais: Álvaro Bento Leal e Amândio Baía, ambos professores no Instituto, o primeiro proveniente da Universidade da Beira Interior e o segundo formado no próprio Instituto. Ambos têm ligações, uma mais aberta outra mais discreta, a João Raimundo, sendo Bento Leal primo do ex-presidente e Amândio Baía afilhado do casal.
As eleições, em 24 de Fevereiro, dão a vitória a Bento Leal, numa demonstração inequívoca de apoio a alguém que ainda se apresentava, então, como seguidor incondicional de João Raimundo, invocando um «imperativo moral» para se candidatar e chegando a afirmar o que três anos depois negaria: «Era necessário demonstrar que o IPG é uma obra séria e mostrar que João Raimundo deve ser absolvido em qualquer julgamento (...) Se ele não tivesse feito a obra que fez, não teria inimigos» (Diário de Notícias, 8 de Maio).
Os resultados são contestados por Amândio Baía e é preciso esperar quase três meses para que, em 2 de Maio, a ministra da Educação, Manuela Ferreira Leite, e o secretário de Estado do Ensino Superior, Pedro Lynce de Faria, cheguem finalmente a uma decisão sobre a homologação dos resultados e a comuniquem directamente aos interessados. Deixando, no entanto, outra dúvida no ar: sendo Amândio Baía o candidato que menos ligações parecia ter com João Raimundo, seria este, a vencer, mais depressa reconhecido como tal por quem tinha chamado a Lisboa o homem que algumas pessoas sabiam que estava prestes a ser detido?
É certo que a gestão de Bento Leal nunca atingiria o nível e o dinamismo da do seu antecessor, dando mesmo origem a uma intervenção da Inspecção-Geral da Educação, em 1997, e a um processo disciplinar contra o próprio em 1998, decidido pelo Ministério da Educação. Mas, naquela altura, a homologação das eleições foi um sinal de que todas as guerras podem ter um fim. Ou, na pior das hipóteses, uma simples pausa... que, neste caso, era obviamente útil para preparar a batalha seguinte: o julgamento que, pelo menos, poderia permitir que João Raimundo saísse em liberdade.

CAPÍTULO 10

O JULGAMENTO
«A acusação é absolutamente falsa, sendo parte da decoração necessária à invenção do crime de terrorismo, para me poder ser imputado um crime punido, segundo o código penal antigo, com uma pena até 10 anos, pena que justificava, se é que não exigia, a prisão preventiva. É preciso não esquecer que o sofrimento e a injustiça da prisão preventiva, durante quase um ano, ninguém nem nada pode apagar, nem mesmo a absolvição que espero e desejo. Ora, esse resultado foi atingido, foi alcançado na plenitude, por quem o quis obter.»
Estas palavras de João Raimundo, publicadas em entrevista concedida ao Diário de Notícias no dia 11 de Outubro de 1995, são reveladoras.
Começava nesse dia, na Covilhã, o seu julgamento e o de Luís Brígida. Era o momento da verdade, a batalha final de um processo longo de um ano e havia chegado a altura de dar tudo por tudo para afirmar de que lado estava a justiça, de levar mais longe o que se percebia ser a crescente diminuição da solidez da acusação de «terrorismo na forma tentada».
«Eu não faço política», garantiu João Raimundo, ainda da prisão, na mesma entrevista.
E acrescentava: «Os meus interesses são sindicais, científicos e pedagógicos. Por que motivo desejaria eu vingar-me de outras pessoas, com as quais nem sequer me encontro na vida profissional ou social? E ainda por cima escolher uma vingança violenta! Isto quando eu nunca tive uma confrontação física com qualquer outra pessoa, nem mesmo na escola primária! Não é credível, é um absurdo. Porém, como foi divulgado em jornais, revistas e na televisão, passou a ser verdade. A mentira, pela força da repetição, torna-se verdade e, por vezes, história.»
João Raimundo refutava, assim, a tese da «lista negra»: «Quanto à dita “lista negra”, nem sequer sei a totalidade dos nomes que nela incluem, e como já a vi escrita com diferentes composições limito-me a dizer que a mesma só não é pueril por ser um dos elementos — aliás falso — que explica a minha prisão. Nunca fiz qualquer lista de pessoas a “sovar” ou a espancar e nunca quis vingar-me de qualquer pessoa.»
«Os erros judiciários existem e eu sou vítima de um», dissera também ao Expresso, que publica as suas declarações a 29 de Setembro.
«A mentira, pela força da repetição, torna-se verdade e, por vezes, história» — a afirmação de João Raimundo, que se sentou nessa manhã no banco dos réus no Tribunal da Covilhã, ao lado de Luís Brígida (este, calado e constrangido), é uma legenda adequada para os dias que vão seguir-se.
O julgamento, que teve na Comunicação Social o eco inevitável (eco que não reproduziu, no entanto, o verdadeiro teor do que lá se passou), começou por uma decisão, requerida pela defesa dos dois homens: que os libertem, porque não fogem, e porque João Raimundo, detido no Hospital-Prisão de Caxias, está doente, como bem o provam os médicos.
Por esse motivo, o começo é, de certa forma, uma reviravolta como, em certa medida, também o será o fim (provisório), quando o colectivo de três juizes troca a acusação de «terrorismo na forma tentada» por uma sentença de ofensas corporais. É uma mudança de sentido que, sendo um recuo relativamente às intenções iniciais, não deixará de ser um recurso para poder condenar os dois arguidos com uma pena tão pesada quanto a lei em vigor o permitia.
No entanto, nesse dia 11 de Outubro, ao contrário do que as autoridades judiciais haviam feito durante os quase doze meses de cadeia do ex-presidente do Instituto Politécnico da Guarda, o Tribunal da Covilhã ainda se consegue pronunciar pela liberdade provisória de João Raimundo, decisão que estende a Luís Brígida. E João Raimundo é imediatamente posto em liberdade provisória e é com uma voz embargada pela emoção que o comunica aos amigos, nessa noite, no hotel da Covilhã onde é mandado instalar-se.
Esta decisão do Tribunal, aguardada com alguma expectativa, é quase uma surpresa porque tudo estava preparado para que João Raimundo visse a sua condenação inicial — feita pela Comunicação Social — ratificada desde o primeiro instante do julgamento.
A condenação como terrorista tinha que ser pronunciada — era o significado dessa mensagem que se podia ler nas entrelinhas de quase todas as matérias publicadas nos jornais, quando as atenções lentamente se voltam da derrota estrondosa do cavaquismo, nas eleições de 1 de Outubro de 1995, para o julgamento da Covilhã.
Aliás, o julgamento não deixa, indirectamente, de ser marcado pelas sequelas da derrota eleitoral: o homem que sucedera a Marília Raimundo na chefia do PSD da Guarda, o secretário de Estado da Agricultura Álvaro Amaro, o homem de confiança do líder Fernando Nogueira, herdeiro transitório de Cavaco, não conseguira aguentar o eleitorado laranja e o seu partido fica num pouco honroso segundo lugar, com o PS e o dirigente socialista António José Seguro a exibirem uma saborosa vitória.
A pergunta — e alguém a terá feito entre os social-democratas locais — era inevitável, mesmo tendo em conta o panorama político geral do País: se Marília Raimundo tivesse mantido o seu lugar, seria diferente o resultado na Guarda? Álvaro Amaro nunca poderá livrar-se do peso sombrio dessa dúvida...
Entretanto, a Comunicação Social de expansão nacional começa a deslocar-se para a Covilhã e os seus repórteres vão relatando — e fazendo títulos à medida — que «Raimundo nega tudo» e que Brígida se mantém silencioso. Se a tese da «lista negra» ainda aparece como explicação essencial para o que estava a acontecer, já se falará, a certo ponto e abertamente, no obscuro objecto do desejo comum de Brígida e de Jacinto Dias.
Quanto aos homens da «lista negra», eles parecem distanciar-se e até Jacinto Dias, antes da leitura da sentença, faz questão de desistir de qualquer processo contra os dois arguidos.
Assim, quem acaba por adquirir maior notoriedade são Ângelo de Trancoso (pelas razões óbvias de ter sido, como «falso polícia», um herói duvidoso) e Bernardo Duarte.
Este, aliás a única vítima putativa a introduzir no julgamento um pedido de indemnização por alegadas ameaças e prejuízos psicológicos decorrentes da sua inclusão na «lista negra», nunca deixará de manter uma obsessão muito particular contra João Raimundo, mesmo depois das decisões do Supremo Tribunal de Justiça.
A defesa de João Raimundo continua, entretanto, a assentar, desde o início, num pressuposto essencial: as gravações não servem, são ilegais.
Para o efeito, brande os pareceres que as consideram — por terem sido feitas sem autorização — ilegais e impróprias para uso em tribunal.
Este é um dos pontos mais interessantes do processo.
O registo daquelas conversas fora, de facto, feito sem autorização judicial. E não podem ser consideradas legais. Mas o que lá está, com Ângelo do Nascimento a aliciar Brígida para atacar pessoas que o próprio ex-﷓terrorista indica, não é suficientemente forte para dar solidez à acusação. Que (talvez por isso mesmo?) nem faz questão de as utilizar no tribunal.
Ou seja, para a acusação, desde que as gravações não fossem escalpelizadas, estava ali tudo. E talvez fôsse melhor nem pôr mais nada...
E para quem, nos vários sectores envolvidos, nunca as ouvira nem lera as suas transcrições, a Comunicação Social — através das habituais «fontes policiais» nunca identificadas — já dissera tudo: o motorista de João Raimundo queria ver agredidos alguns homens de quem o ex-presidente do IPG e a mulher não gostavam.
Aliás, é exemplar o modo como, em 30 de Junho, o Público titula, em jeito de ponto de situação, que será a Covilhã o local escolhido para o julgamento: «Lista negra e sede de vingança» (sem aspas) e, em legenda a uma fotografia de João Raimundo: «João Raimundo: um juiz da Covilhã decidirá se houve terrorismo».
A batalha da Covilhã é, pode dizer-se, violenta e passará quase um mês antes de a sentença, tão controversa como a acusação, ser conhecida.
A postura de João Raimundo e de Luís Brígida — como a relatarão os jornais — é significativamente distinta.
Enquanto o motorista, segundo o seu advogado, Rodrigo Santiago, apresentava «falta de condições psicológicas» para intervir, João Raimundo falava sem medo, para negar e rejeitar tudo aquilo de que era acusado, contra-atacando sem medo diante dos juizes e do Ministério Público.
«Nunca mandei dar sovas em ninguém. A violência é o argumento dos que não têm razão», disse, refutando todas as acusações e todos os argumentos que davam corpo à acusação numa resposta de quase três horas.
A tal vendetta? Seria «mal empregado gastar o dinheiro dessa maneira».
Dissera ao motorista que este ou aquele devia ser molestado? «As principais conversas que mantinha com o meu motorista eram sobre futebol porque somos de clubes diferentes.»
Estava no aeroporto de Londres, no regresso de Macau, quando soube da prisão do motorista e houve quem dissesse que ia fugir para o Brasil? «Já lá estive uma vez mas não gostei muito do país.»
Quis vingar-se por Marília ter sido derrotada no PSD da Guarda? «A derrota da minha mulher, pessoalmente, foi um alívio. Ficámos com muito mais tempo livre.»
Era assim tão poderoso o casal Raimundo na cidade? «O casal só existe em casa. A expressão “casal Raimundo” é quase ofensiva para mim. Eu fiz a minha vida, a minha mulher fez a dela, tínhamos uma vida separada em termos políticos.»
O julgamento, onde são ouvidas 44 testemunhas, fica marcado por algumas sessões à porta fechada (no caso de Álvaro Guerreiro e de Granja da Fonseca, ambos a invocarem a sua situação profissional, o primeiro por ser advogado, o segundo por ser juiz) e por um incidente que envolve o mesmo Granja da Fonseca.
Atenhamo-nos, para que conste, nos relatos feitos por três jornais sobre este acontecimento:
«A audição de Granja da Fonseca, a seu pedido, decorreu à porta fechada. Uma situação que lançou tumular silêncio nos corredores do Tribunal da Covilhã até cerca das 16 horas, pese embora a presença massiva de órgãos de Comunicação Social. A esta hora, vem a revelação. Aos jornalistas, o magistrado mostra-se “profundamente chocado” com o que tinha acontecido com a recolha do seu depoimento. “Durante a manhã, fui ouvido e tido como pessoa respeitável e competente. Mas à tarde, o advogado Rodrigo Santiago, responsável pela defesa de Luís Brígida, fez um requerimento no qual prescindia do meu depoimento, alegando que sou uma pessoa doente e afectada nas minhas capacidades psíquicas”. E Granja da Fonseca conclui: “Num curto espaço de tempo deixei de ser uma pessoa consciente para passar a inimputável”. Face a este incidente, que não pretende interpretar, o magistrado requereu uma certidão da sessão para enviar à Ordem dos Advogados, ao mesmo tempo que admite mover um processo contra Rodrigo Santiago. Granja da Fonseca afirmou que foi a primeira vez que se viu numa situação destas. De primeiro nome de uma lista negra de pessoas a atingir, o magistrado transformou-se, segundo ele próprio, numa espécie de arguido. Uma situação tanto mais grave “pois não pedi nem pedirei qualquer indemnização. Aliás nem queixa apresentei. Não é meu hábito”.» (Teresa Cardoso, Jornal de Notícias, 13/10/95)
«...O juiz Granja da Fonseca, ouvido à porta fechada a seu pedido, revelou no final do seu depoimento ser sua intenção proceder criminalmente contra o advogado Rodrigo Santiago (...). Fá-lo-á porque, segundo disse aos jornalistas, o causídico prescindiu das suas declarações, alegando que ele apresentava “perturbações intelectuais volitivas”. “Foi o mesmo que me chamar inimputável”, observou, comentando ser “incrível” o que se estaria a passar “nos corredores” do tribunal. Rodrigo Santiago respondeu, dizendo que não queria ofender Granja da Fonseca e apenas fizera notar que este não se encontrava em condições para depor. “Até chorou!”, exclamou.» (Alexandra Campos, Público, 13/10/95)
«O longo depoimento de Granja da Fonseca ficou marcado por vários incidentes e pela recusa dos advogados de defesa em lhe fazerem perguntas. No final, aquele magistrado anunciou que iria apresentar uma queixa-crime e uma participação à Ordem dos Advogados contra o advogado de defesa Rodrigo Santiago, já que se sentira injuriado com o conteúdo de uma declaração feita em acta por este causídico. Segundo apurou o Expresso, tal declaração é mais ou menos do seguinte teor: a lei é igual para todos, embora seja mais igual para uns do que para outros. A testemunha que acaba de depor é membro de um órgão de soberania e como tal tem de ser respeitada. Porém, como ficou evidente para este tribunal, trata-se de uma pessoa efectivamente perturbada nas suas capacidades. É um homem doente e por essa razão a defesa recusa-se a fazer-lhe perguntas. (...) Os restantes advogados de defesa recusaram-se também a fazer perguntas a Granja da Fonseca mas sem pôr em causa as suas faculdades, considerando apenas que o seu depoimento revela grande animosidade contra João Raimundo.» (António Marinho, Expresso, 14/10/95)
Quem também esteve no centro das atenções foi Ângelo do Nascimento.
O «operacional do MDLP», como foi geralmente mencionado, parece ter procurado um protagonismo pelo menos idêntico ao que assumira no início do caso e queixou-se, até, de ter sido aliciado por um dos advogados da defesa, João Barros, para não comparecer no julgamento. Teve, como resposta, um anúncio de processo-crime e, finalmente, um destaque que lhe permitiu sobressair com um título assim: «Deputada do PSD acusada de tomar parte na alegada vendeta da Guarda — Ângelo envolve Marília» (Público, 13/10/95). Apenas porque Ângelo decidira invocar quem já tinha sido rejeitado pela própria acusação por falta de credibilidade, José Manuel do Amaral, o «Roupinhas», meses depois de esse dossier ter sido fechado! Ouçamos Ângelo, em discurso directo:
«Logo no início, quando fui ouvido na PJ, telefonaram para a minha ex-mulher, dizendo que alguém ia pagar tudo aquilo que eu estava a fazer. Posteriormente, fui contactado pelo Amaral [José Manuel Amaral, um cadastrado conhecido por “Roupinhas”], que me disse que a Dra. Marília [deputada do PSD e mulher de João Raimundo] e o Dr. Abílio Curto [presidente socialista da Câmara da Guarda] lhe tinham oferecido uma verba de 30 mil contos para me matar e ao Jacinto Dias. Posteriormente, confirmou-me que, efectivamente, tentaram aliciá-lo, tendo dito mesmo que eu ainda iria morrer na minha própria quinta» (Público, 19/10/95).
A importância dada a Ângelo de Trancoso entra, de certa maneira, em conflito com a pouca atenção que é dada ao que se passa na sala de audiências. A maioria dos jornalistas, talvez por acreditar totalmente na eventual bondade da acusação, não parece ter-se preocupado em seguir o próprio julgamento. E, no entanto, o muito que haveria para contar... e para perguntar!
Vejamos um único exemplo. Eis o que diz, a certa altura, uma testemunha de Granja da Fonseca, Fernando Lopes, militante do PS e, mais tarde, governador civil: «Julgava eu que, no meu partido algumas coisas andavam muito mal mas, afinal, no PSD andava tudo muito pior. Confidenciou-me o meu amigo, Dr. Júlio Sarmento [presidente da Câmara Municipal de Trancoso] que, nessa altura, a ordem de trabalhos no PSD era sempre só: à Dra. Marília Raimundo não foi só preciso derrotá-la, o que é preciso é humilhá-la». E quando o juiz lhe pergunta quem dizia isso, insistindo que ele estava sob juramento e que devia responder e inquirindo-o mesmo se se trava de alguém ali presente, a testemunha respondeu: «Não. O mandante ainda não o ouvi citar. Mas toda a gente sabe que é o Dr. Álvaro Amaro, é claro...».
Esta afirmação não causou qualquer celeuma ou desmentido.
O julgamento, só termina quando, em 6 de Novembro, é lida a sentença, assinada pelos três juizes, Fernando Gaito das Neves, António Vieira Marinho e Paulo Eduardo Cristão Correia.
Em 39 páginas, é historiado o processo e são dados como provados 131 factos.
Por exemplo: que quando João Raimundo foi nomeado presidente do IPG em 1985, «o Sindicato dos Professores da Região Centro insurgiu-se contra a nomeação»; que Jacinto Dias, João Gonçalves e António Soares Gomes, tendo apoiado a candidatura de Álvaro Amaro, quando «anteriormente sempre tinham apoiado Marília Raimundo», foram considerados «traidores» por Dr. João Raimundo, que «referiu, por diversas vezes, ao co-arguido Luís Brígida que os indivíduos referidos (...) mereciam uma sova» e que este «afirmou para o Dr. João Raimundo que arranjaria alguém para que poderia executar tal tarefa, isto é, dar as sovas pretendidas».
O tribunal, note-se, não dá por provado aquilo que se pode ler nas transcrições das gravações: «que tivesse sido Ângelo do Nascimento a induzir o arguido Luís Brígida a vingar-se também dos que houvessem prejudicado o seu “chefe”» e «que tivesse sido Ângelo do Nascimento a sugerir a Luís Brígida o nome do Exmo. Juiz Dr. Granja da Fonseca como uma das pessoas a abater».
Sobre os mil contos, o tribunal não dá também por provado que essa quantia tenha sido dada pelo pai de Brígida ao filho e declara o dinheiro como «depositado nos autos» e «perdido» (a favor do Estado) sem que nada ateste do seu paradeiro.
E afirma, ainda, não ter sido provado «que o arguido Luís Brígida tivesse mantido um relacionamento sexual com uma tal Manuela Vidal» que, por sua vez, «em Julho de 1994, tivesse confidenciado ao arguido Luís Brígida que, igualmente, tinha um envolvimento sexual com o Dr. Jacinto Dias» e que «também tivesse confidenciado ao Dr. Jacinto Dias qualquer envolvimento com Luís Brígida». Se é possível comentar que, a haver caso, ele se ficara por intimidades de prova eventualmente impossível (por, presumivelmente, envolverem apenas duas pessoas...), também convirá recordar o modo como esta pista foi quase apagada no decurso do processo.
Ei-la, assim, vitoriosa em toda a linha, a tese da «lista negra», a que surgira desde o início na Comunicação Social, que a PJ avançara e que o Ministério Público perfilhara.
Como vitoriosa é, também, a tese de que, fingida a agressão a Jacinto Dias (e apesar das propostas de Ângelo do Nascimento), deve ser Brígida a assumir — com João Raimundo como «mandante» — o ónus de escolher os nomes da «lista negra» e as datas mais oportunas para as agressões.
Quanto à «lista negra», o tribunal faz o que a PJ não conseguira fazer: define-a. E indica seis homens, excluídos os nomes de segunda linha que ainda tinham aflorado na Imprensa: Álvaro Guerreiro, Bernardo Duarte, Jacinto Dias, Granja da Fonseca, João Gonçalves e Soares Gomes, todos «pessoas que, na perspectiva do arguido Dr. João Raimundo, o haviam prejudicado politica, pessoal e profissionalmente».
E ainda acrescenta que a hipotética agressão — cuja concretização o próprio Tribunal diz ter sido «fingidamente» aceite por Ângelo — tinha por objectivo «provocar-lhes medo, assustá-los e castigá-los por posições anteriormente assumidas, assim os intimidando». Por isso, pode a sentença consagrar que: «... a vontade culpável, isto é, dolosa, quer na tentativa quer no crime consumado, se nos apresenta como valorável de forma igual».
A sentença, criado este quadro, é baseada numa consulta a seis dicionários e a alguma doutrina.
Cai por terra a acusação de terrorismo, por não haver perturbação da paz pública, e cai a da «forma tentada». Mas já sobeja, enquadrado pelo novo Código Penal desse mesmo ano, o crime de ofensas corporais com dolo de perigo, multiplicado por seis pessoas, operação numérica que, dando mais realce ao juiz por ser juiz, atribui três anos de prisão a João Raimundo e dois anos de prisão a Luís Brígida, tempo do qual haverá que descontar a prisão preventiva. Sem qualquer piedade: a pena não é, sequer, suspensa.
Quanto ao pedido de indemnização cível de Bernardo Duarte, não se dá como provado que tivessem sido João Raimundo ou Luís Brígida os autores das alegadas (e nunca cumpridas) ameaças e, como tal, não só não dá razão a Bernardo Duarte como o condena ainda a pagar as custas do respectivo processo.
«A mentira, pela força da repetição, torna-se verdade e, por vezes, história» — a frase de João Raimundo serve bem de comentário a esta sentença, embora não seja a única reacção a registar.
A mais forte é, naturalmente, a da defesa, que endereça, como recurso, ao Supremo Tribunal de Justiça uma das suas peças mais notáveis. Regressemos à pena de Nuno Godinho de Matos:
«Se Deus existir, pode passar a tomar os seus cuidados e reservas, pois, apesar da sua omnipotência, na Terra, os tribunais portugueses têm o poder de transformar em factos ocorridos hipóteses de eventos que nunca se chegaram a verificar. O poder de criar partindo do nada já não é um privilégio divino, é um atributo da faculdade de decidir o que está ou não provado, subsumindo, depois, os factos ao direito.
«Este processo é pródigo em lições de metafísica e de direito penal, destacando o recorrente, com o devido respeito, a seguinte frase, lapidar e brilhante síntese dos princípios básicos de direito penal:
«“E, por assim ser é que a vontade culpável, isto é, dolosa, quer na tentativa quer no crime consumado, se nos apresenta como valorável de forma igual.”
«Por força deste princípio, se o mesmo foi bem compreendido, em tese geral, ou em sede de ofensas corporais, caso dos autos, a tentativa merece a mesma censura ética ou penal que a dada ao crime consumado.»
É deste modo que o recurso se apresenta, nele se submetendo três hipóteses para a correcção da decisão do Tribunal da Covilhã. Uma é a absolvição. A outra é a que o Supremo Tribunal de Justiça finalmente acolherá: «se assim não se entender, hipótese que só se formula à cautela (...) deverá a mesma sentença ser anulada, anulando-se, aliás, todo o processado desde o termo do inquérito, incluindo a acusação do Ministério Público, por a mesma ter sido elaborada com base nas ilegais gravações, já controvertidas no recurso próprio». Finalmente, «se assim não se entender, hipótese que só se formula à cautela, então deverá ser a mesma sentença ser anulada, anulando-se todo o processado incluindo o despacho que designou a data para julgamento, a fim de se proceder a novo julgamento, sem os vícios de resposta à matéria de facto e de fundamentação da formação da convicção do Tribunal, patenteados pela presente sentença». E ver-se-á, em Janeiro de 1999, como o Supremo Tribunal de Justiça acolherá a segunda hipótese proposta por Nuno Godinho de Matos.
O recurso da defesa tem 40 páginas bem fundamentadas. A começar pela observação de que não houve tentativa, quer se considerassem o terrorismo quer as ofensas corporais, no Código Penal de 1982 ou no de 1995:
«... Em ambos os diplomas, para haver tentativa, é necessário que os actos praticados sejam de natureza a consumar o crime, só não se verificando o mesmo porque algo alheio à vontade do possível criminoso fez com que a consumação não se verificasse.
«Isto é, para haver tentativa de execução do crime, o possível agente do mesmo, para lá de desejar os efeitos do crime, tem de praticar actos que provoquem o resultado criminoso. Por exemplo, disparar uma espingarda carregada com pólvora e projéctil contra a vítima da tentativa de homicídio; contudo, o projéctil, por bater numa parede, não atinge a vítima. Isto, sim, é tentativa! O crime foi desejado e foi executado só que não aconteceu o homicídio porque existia uma parede onde a bala bateu, razão pela qual não atingiu a possível vítima, a qual, porque não foi atingida, deixou de ser vítima.
«Aqui não há vítima do crime, mas há tentativa da prática do crime. Suponhamos, agora, que a mesma espingarda está carregada de pólvora seca. O agente desfere cinco tiros contra a vítima, ouvem-se cinco estrondos, ao mesmo tempo e com raiva grita — matei-te, malandro! Contudo, a pólvora era seca e a dita vítima não só não sofreu coisa alguma como, rindo-se, pode retirar a espingarda ao “candidato a homicida”. Neste caso, houve tentativa de crime? Sendo a pólvora seca e não sendo as balas concretas daquela espingarda idóneas a provocarem a menor lesão, quer no corpo humano, quer em qualquer outro produto material, há ou não tentativa da prática do crime?
«Salvo melhor opinião, só por erro se poderá defender o contrário. Obviamente não há tentativa. O crime, apesar de intensamente desejado, era impossível. Aquele meio, embora com a aparência de idóneo, não era, de facto, idóneo. (...) Não há tentativa de crime porque o crime desejado era impossível.» [Recordemos que Ângelo do Nascimento não quis praticar o alegado crime, fosse ele terrorismo ou ofensas corporais.]
O problema, aqui, é outro e a defesa aponta-o, certeiramente: «O problema, neste processo, resulta da sua repercussão nos órgãos de Comunicação Social e do facto de, por erro de qualificação dos factos, os arguidos terem estado mal presos preventivamente, com a acusação de tentativa de terrorismo. Não fossem estes antecedentes e, seguramente, os meritíssimos senhores juízes, autores do acórdão recorrido, não teriam cometido os involuntários erros evidenciados no texto...»
Recordando como Ângelo «estava a procurar reunir prova das intenções de Luís Brígida para, no mínimo, a mostrar ao Dr. Álvaro Guerreiro», a defesa salienta que «Ângelo não só nunca teve a mínima intenção de agredir fosse quem fosse como, muito pelo contrário, Ângelo estava empenhado em impedir que tal sucedesse». Como o próprio afirmou em julgamento.
E também não há tentativa porque, para que ela existisse, «Brígida e Ângelo teriam de ter recrutado um terceiro agente do crime que, real e deliberadamente, não fingidamente, se dispusesse a bater em Jacinto Dias».
«A emboscada verdadeira, não fingida, teria de ser montada e no exacto momento da consumação da agressão, então, e só nesse momento, a polícia aparecia e dava voz de prisão ao real e voluntário infractor. É assim que actuam os agentes da polícia infiltrados», explica Nuno Godinho de Matos.
A defesa também desmonta a tese da «lista negra», recordando que «somente quanto a Jacinto Dias existiu uma ordem de acção e de bater, somente quanto a ele foi acordada a pretensa acção. Somente em relação a ele, o tribunal menciona os factos descritos no n.º 77 (partir o braço a Jacinto Dias), 78 (existência de dinheiro para esse trabalho), 81 (descrição de Jacinto Dias e a dos locais por ele frequentados), 82 e 84 (indicar a casa).»
«Quanto a todas outras pretensas vítimas», continua a defesa, «não existe qualquer factualidade como a acima mencionada, isto é, quanto a todas as outras pretensas vítimas, apesar das insistências de Ângelo, apesar das provocações ao crime por ele consumadas, apesar da incitação ao crime, como está provado e resulta dos n.os 102, 104, 107, 108 (a iniciativa do encontro é de Ângelo)...»
«Pode o colectivo aprovar a instigação ao crime cometida por Ângelo?», interroga-se a defesa, depois de rejeitar, por falta de provas, a «lista negra», nela incluída Granja da Fonseca.
E conclui: «Mesmo admitindo a tese de que houve tentativa de ofensas corporais, o que não sucede, então, tal só seria possível quanto à “vítima” Jacinto Dias, a qual, no uso do seu direito de dispor do seu físico veio, expressamente, antes da leitura da sentença, renunciar a qualquer direito ao procedimento crminal contra os arguidos ora recorrentes, o que é quanto basta para nunca poder haver punição.»
Refutando o dolo de crime alegado na sentença, a defesa acusa o tribunal de fazer «interpretações extensivas» da lei, ao agravar as punições através da figura do dolo de perigo. E avança:
«O que o tribunal não soube foi verificar se os actos dados como provados eram ou não idóneos à produção do resultado desejado. Essa é que é a questão. Não se ignora que na tese do tribunal houve dolo, e dolo muito intenso. Contudo, quando chegamos ao domínio dos actos exteriores de execução do crime, eram os mesmos idóneos à produção do resultado desejado pelos arguidos (segundo a tese da sentença, tese que se repudia)? Óbvia e comprovadamente não!»
Aceitando, como hipótese, que «o convite a Ângelo de Trancoso para bater em pessoas fosse idóneo a provocar uma agressão em quem quer que fosse (...) e [que] tudo o mais estivesse provado», a defesa objecta que só se estaria perante a tentativa da prática do crime de ofensas corporais simples.
No Código de 1982, esse ilícito seria punido com prisão até dois anos, no de 1995 com prisão até três anos. Só que, neste caso, por força da redacção do art.º 23.º, a tentativa nem seria punida e, por isso, os cinco crimes de tentativa (salvaguardando Jacinto Dias) não poderiam ser punidos.
E, ainda quanto à lei, sustenta Nuno Godinho de Matos: «Note-se que não foi por acaso que até à elaboração da sentença os anteriores magistrados que procederam à acusação e ao despacho de pronúncia acusaram e pronunciaram mal, imputando o crime de terrorismo. É que, mau grado o dito dolo que o tribunal entende estar provado, a lei não permite punir os factos não efectivamente ocorridos. Esta é que é a realidade que não se quer reconhecer.»
Depois, a defesa contesta: «Trata-se duma pena totalmente desproporcionada com a prática da jurisprudência portuguesa, é uma pena que parece odienta, que, numa reflexão menos atenta, se poderia qualificar de contra o homem. Sobretudo se pensarmos que nem sequer foi suspensa. Pretende-se voltar a mandar para a cadeia um cidadão sobre o qual o tribunal escreveu o constante no art.º 126 da matéria de facto [«O arguido João Raimundo tem tido bom comportamento social antes e depois dos factos.»]. Porquê? A cadeia corrige alguma coisa? Serve para alguma coisa? Teme-se que os recorrentes cometam quaisquer outros crimes? Ou, simplesmente, pretende-se dizer à Comunicação Social que os tribunais também enviam os ricos para a cadeia? A prisão não foi concebida para ser usada como medida de retaliação “revanchista”, nem tal uso dessa medida é legal ou legítimo. Em que mundo e país estamos nós?»
A defesa argumenta, ainda, com a existência de numerosas nulidades processuais, lamentando que a sentença não dê «os motivos de direito que determinaram o tribunal a aplicar uma pena tão brutal, não suspensa e [que], acima de tudo (...) não esclarece quais foram as provas que permitiram dar os factos como provados ou não provados».
Aliás, a defesa põe, depois, em destaque que «não se sabe quais foram as provas que serviram de estribo à decisão (...) nem as testemunhais, nem a prova documental», visto que «lendo as actas da audiência, de fio a pavio, isto é, desde a primeira até à última, nelas não se cita a leitura e análise dum único documento».
Ou seja: «O tribunal, como ele próprio escreve, valorizou documentos não analisados, nem submetidos a contraditório na audiência».
É, novamente, a questão das gravações que, tendo sido polemicamente aceites, estão em causa e que não foram, sequer, objecto de leitura ou de análise em tribunal. Sendo essenciais para a conspiração e para a acusação, não tiveram mais uso. O que legitima a pergunta: terá o tribunal, a certa altura, desconfiado do seu conteúdo? A resposta à interpelação da defesa só vai ser dada pelo Supremo Tribunal de Justiça três anos e dois meses depois do julgamento.

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